Gilberto Melo

O julgamento do tema 1170 e sua aplicação na controvérsia relativa aos índices de correção monetária

* Comentário de Gilberto Melo:

O título da matéria se refere a correção monetária, mas o tema trata dos juros da poupança: “É aplicável às condenações da Fazenda Pública envolvendo relações jurídicas não tributárias o índice de juros moratórios estabelecido no art. 1º-F da lei 9.494/97, na redação dada pela lei 11.960/09, a partir da vigência da referida legislação, mesmo havendo previsão diversa em título executivo judicial transitado em julgado.


Na sessão virtual concluída em 11/12/23, o plenário do STF finalizou o julgamento do Tema 1.170, fixando, por unanimidade de votos, a seguinte tese:

É aplicável às condenações da Fazenda Pública envolvendo relações jurídicas não tributárias o índice de juros moratórios estabelecido no art. 1º-F da lei 9.494/97, na redação dada pela lei 11.960/09, a partir da vigência da referida legislação, mesmo havendo previsão diversa em título executivo judicial transitado em julgado.” [gn]

Ou seja: mesmo que o título executivo judicial, já transitado em julgado, tenha previsto a adoção de índice diverso no tocante aos juros moratórios nas condenações envolvendo a Fazenda Pública, em fase de execução dever-se-á observar o índice estabelecido pelo artigo 1º-F da lei 9.494/97, na redação dada pela lei 11.960/09, a partir de sua vigência (29 de junho de 2009), e que estabelece a adoção dos índices oficiais aplicados à caderneta de poupança.

O caso tratou de uma condenação ao INCRA proferida pelo TRF2R em que a autarquia foi compelida a reajustar os vencimentos de seus servidores públicos, com aplicação da alíquota de juros moratórios de 1% a.m. sobre o período apurado, tendo o INCRA se insurgido, em fase de execução, contra os critérios de cálculos apresentados a título de juros moratórios, defendendo sua redução para o índice atualmente previsto no artigo 1º-F da lei 9.494/97 (redação pela lei 11.960/09).

O STF concedeu provimento ao Recurso Extraordinário interposto pelo INCRA, determinando fossem observados os juros de poupança previstos pela redação atual do artigo 1º-F da lei 9.494/97, menores do que os constantes no título judicial.

Segundo o relator, ministro Nunes Marques, a tese fixada não viola o princípio da coisa julgada, visto que não haveria desconstituição do título judicial exequendo, mas apenas aplicação de normas supervenientes, cujos efeitos imediatos alcançam situações jurídicas pendentes. Trocando em miúdos: o ato negativo de inadimplemento da Fazenda Pública se renova no tempo até que se dê o pagamento da dívida, razão por que devem ser observados, até que se dê tal pagamento, os parâmetros legais que se encontrarem vigentes na atualização da dívida fazendária.

A decisão reafirma a tese de que as normas que regem os consectários legais da condenação (como é o caso dos juros moratórios) têm caráter instrumental, ou seja, natureza processual, devendo, assim, ser observadas as regras que se encontrem vigentes no momento de sua incidência (princípio do tempus regit actum). Noutras palavras: o ato negativo de inadimplemento repete-se mês a mês, sendo que, em obrigação que se protrai no tempo, não se cogita da aquisição de direito adquirido de pagar segundo as regras anteriores à renovação da mora.

A questão suscitava grande divergência jurisprudencial, justamente por cuidar da alteração de índice previsto em título judicial transitado em julgado.

Com a decisão da Suprema Corte proferida em regime de repercussão geral, obter-se-á a uniformização do entendimento em todo o território nacional, pacificando a controvérsia e prestigiando a segurança jurídica.

Muito embora o tema decidido tenha sido o da substituição do índice de juros moratórios previsto no título executivo, o julgamento deverá se prestar a solucionar controvérsia correlata, que também é objeto de intensa discussão jurisprudencial: a substituição da Taxa Referencial – TR, prevista no título como índice de correção monetária da dívida fazendária por índice que se revele mais idôneo a recompor o processo inflacionário.

Como se sabe, o STF, no julgamento do Tema 810, ocorrido em 20/9/17, reconheceu a inconstitucionalidade da TR para fins de atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública, por “impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina“.

Dessa forma, o artigo 1º-F da lei 9.494/97, com a redação dada pela lei 11.960/09, na parte em que disciplinava que a atualização monetária das dívidas da Fazenda Pública deveria se dar pela TR (“índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”), foi declarado inconstitucional pelo STF, sem modulação de efeitos (eficácia “ex tunc”).

Com isso, e diante da falta de modulação de efeitos, passou-se a se perquirir se referida decisão deveria possuir reflexos em relação aos títulos judiciais já transitados em julgado e que, observando a redação então vigente do artigo 1º-F da lei 9.494/97 (lei 11.960/09), estabeleciam que a dívida deveria ser corrigida pela TR.

Estabeleceu-se intenso debate jurisprudencial a respeito – perdurando até os dias atuais -, havendo dissonância entre diferentes tribunais federais e estaduais, entre turmas integrantes de um mesmo tribunal e sendo recorrentes as mudanças de posicionamento, inclusive dentro do próprio STJ.

Há, de um lado, os defensores de que a substituição da TR prevista no título por índice diverso enseja violação à coisa julgada1. De outro lado, há os que defendem que o afastamento da TR não enseja violação à coisa julgada, baseando-se no fato de que a decretação de inconstitucionalidade por parte do STF deu-se com efeitos retroativos, isto é, desde a vigência da lei 11.960/09 (29/6/09), devendo, assim, abarcar os títulos já transitados em julgado.

Como afirmado acima, os defensores desta última corrente sustentam que se está a tratar de consectário legal da condenação, de caráter instrumental e sobre o qual inexiste deliberação de mérito (não havendo, portanto, se falar em coisa julgada), de modo que os índices de atualização monetária constantes no título devem se conformar aos parâmetros legais que se encontrarem vigentes até o efetivo pagamento2.

A substituição da TR se daria por um dos índices previstos no Tema 905 do STJ, que cuidou, justamente, de definir quais índices devem ser empregados na atualização monetária das dívidas judiciais da Fazenda Pública após a decretação de inconstitucionalidade da TR pelo STF, prevendo, por exemplo, a adoção do IPCA para condenações de natureza administrativa em geral ou do INPC para condenações previdenciárias (embora o Tema 905 não tenha estabelecido a alteração de índices previstos em decisões transitadas em julgado).

Mais recentemente, o STJ passou a suspender a discussão3 até que o STF fixasse a tese no Tema 1.170, visto que “embora a controvérsia (do Tema 1.170) esteja estabelecida especificamente em relação aos juros moratórios, verifica-se que o próprio Supremo tem ‘considerado que o julgamento do mérito do Tema 1.170 da Repercussão Geral também cuidará da controvérsia relativa aos índices de correção monetária’, e determinado o sobrestamento dos feitos de acordo com a sistemática da repercussão geral [RE 1.364.919/ES, rel. Ministro LUIZ FUX, DJe 1/12/22]” (STJ. EDcl no AgInt no AREsp 2.064.400/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 24/4/23, DJe de 26/4/23).

A tese fixada no Tema n° 1.170, no entanto, não cuida expressamente da controvérsia relativa aos índices de correção monetária. De qualquer forma, ela deve sim ser utilizada para pacificação da dissonância, diante da reafirmação do entendimento de que inexiste trânsito em julgado em relação aos consectários legais da condenação, que não se referem ao próprio thema decidendum.

A ideia ganha força justamente quando se recorda que está a tratar, no caso, simplesmente da correção monetária da dívida, isto é, da preservação do valor aquisitivo da moeda, sem que isto implique, pela própria natureza da atualização monetária, em ganho ao credor, mas meramente em impedimento de perda patrimonial. Não há redefinição do título executivo, devendo somente se atentar para que o novo índice se revele suficientemente idôneo a neutralizar os efeitos da inflação, sem que isto constitua “um plus que se acrescenta ao crédito, mas um minus que se evita“4.


1 “[…] Uma vez afirmado pela instância ordinária que o título judicial foi proferido quando já em vigor a Lei n. 11.960/2009, determinando-lhe a incidência, deve haver observância da coisa julgada, ainda que inconstitucional até que a referida sentença seja desconstituída. 4. A decisão da Corte Suprema, ao declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo, não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente, sendo “indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (art. 495, CPC)” (Superior Tribunal de Justiça [Primeira Turma]. AgInt no AgInt no AREsp n. 1.957.521/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, julgado em 17/10/2022, DJe de 21/11/2022)

“[…] 6. Estabelecidos definitivamente os parâmetros de atualização do crédito antes da declaração de inconstitucionalidade realizada pelo Supremo Tribunal Federal (Tema n. 810/STF), a alteração dos índices de correção monetária em embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença implicaria retroação da eficácia executiva dessa declaração para atingir um ato judicial pretérito, qual seja, a decisão com trânsito em julgado. […] 8. Muito embora o Superior Tribunal de Justiça reconheça a natureza de trato sucessivo da cobrança de correção monetária e sua regência conforme a regra em vigor na época do vencimento da obrigação, esta mesma Corte não afasta índices diversos fixados em decisão judicial não mais sujeita a recurso, por observância à coisa julgada.” (Superior Tribunal de Justiça [Segunda Turma]. Agravo Interno no Recurso Especial n° 1.950.278/DF. Relator Ministro Og Fernandes, julgado em 19/04/2022 – grifo nosso)

2 “[…] 2. O Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 870.947/SE (Tema 810), assentou a compreensão de que “o art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina”; estabeleceu, ainda, que a correção monetária deve observar o IPCA-E. 3. Manutenção do decisum que deu provimento ao recurso especial interposto pela parte exequente, para restabelecer a decisão que determinou o prosseguimento da execução de acordo com a planilha na qual se aplicou o IPCA-E” (Superior Tribunal de Justiça [Primeira Turma]. Agravo Recurso Especial n° 1.925.739/RN. Relator Ministro Sérgio Kukina, julgado em 16/8/2021 – grifo nosso)

“[…] 3. Ainda na linha de nossa jurisprudência, “A Primeira Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.112.746/DF, afirmou que os juros de mora e a correção monetária são obrigações de trato sucessivo, que se renovam mês a mês, devendo, portanto, ser aplicadas no mês de regência a legislação vigente. Por essa razão, fixou-se o entendimento de que a lei nova superveniente que altera o regime dos juros moratórios deve ser aplicada imediatamente a todos os processos, abarcando inclusive aqueles em que já houve o trânsito em julgado e estejam em fase de execução. Não há, pois, nesses casos, que falar em violação da coisa julgada.” (Superior Tribunal de Justiça [Segunda Turma]. EDcl no AgRg no REsp 1.210.516/RS, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 25.9.2015). 4. Agravo Interno não provido (AgInt no REsp n. 1.967.170/RS, relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 27/6/2022, DJe de 29/6/2022)

3 STJ, PDist no REsp n. 2.097.763, Ministro Francisco Falcão (T2), DJe de 27/11/2023. STJ, REsp n. 2.096.818, Ministro Herman Benjamin (T2), DJe de 27/10/2023. STJ, AREsp n. 2.322.650, Ministro Sérgio Kukina (T1), DJe de 22/11/2023. STJ, RE no REsp n. 1.349.925, Ministro Og Fernandes, DJe de 22/11/2023. STJ, EREsp n. 2.027.772, Ministro Paulo Sérgio Domingues (T1), DJe de 06/11/2023.

4 Superior Tribunal de Justiça [Corte Especial]. Recurso Especial n° 1112524/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 01/09/2010.

Autor: Gabriel Tápias

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/399625/o-julgamento-do-tema-1170-e-sua-aplicacao-na-controversia