Gilberto Melo

TR: taxa de juros ou indexador?

A taxa referencial (TR) possui natureza jurídica de taxa de juros e seu uso como indexador provoca relevantes distorções monetárias, que devem ser objeto de constante questionamento perante os tribunais brasileiros.

O presente trabalho tem como objetivo abordar, ainda que brevemente, a natureza jurídica da Taxa Referencial (TR), criada pela Lei Federal n.° 8.177, de 01 de março de 1991, e regulamentada pela Resolução e Circular n.° 2.437, de 30 de outubro de 1997, e 3.056, de 20 de agosto de 2001, editadas respectivamente pelo Banco Central do Brasil e pelo Conselho Monetário Nacional.
 
Partimos da pergunta: TR. Taxa de Juros ou Indexador?
As respostas à esta indagação podem levar a conclusões de relevante repercussão para temas corriqueiros, como a metodologia adotada pelo Poder Judiciário para cálculo dos débitos que tem origem nas relações de trabalho, ou a forma de correção dos contratos do Sistema Financeiro da Habitação.
 
Em 1991, quando ocorreu a publicação da Lei n.° 8.177, os brasileiros ainda vivenciavam as consequências de várias medidas econômicas implementadas pelo Presidente Collor, que fora eleito com a promessa de acabar com os Marajás e controlar a inflação, que naquele momento estava em crescendo disparada. Este recente período da história brasileira foi sintetizado pela jornalista Miriam Leitão[1]:
 
(…) ninguém se entendia nos bancos e nas conversas com integrantes do governo. Medidas Provisórias tinham sido escritas e reescritas, circulares saíam se contradizendo ou corrigindo erros, novas edições das cartilhas davam orientações diferentes para a mesma situação. Bancários liam e reliam textos incompreensíveis.”
 
As medidas econômicas do Plano Collor (que incluíram o congelamento de preços e de valores depositados nas Instituições Financeiras), foram determinantes para a desconstrução de diversas empresas, atividades e empresários, que, repentinamente, estavam diante de um cenário onde não teriam acesso aos seus recursos financeiros.
 
Conclui a já mencionada jornalista:
 
Meses depois desse plano improvisado e incongruente de 1991, a equipe de Zélia Cardoso de Mello [Ministra da Fazenda] caiu, deixando o país com alergia a intervenções violentas na economia.” [2]
 
Logo depois, o Presidente Collor seria o alvo de investigações que levaram ao início do processo de impeachment perante o Supremo Tribunal Federal, e culminaram com sua renúncia.
 
Este é o contexto economicamente confuso e socialmente tenso no qual se promoveu a elaboração e publicação da Lei n.° 8.177/1991 que criou a Taxa Referencial.
 
O breve registro histórico tem o objetivo de demonstrar as diversas dificuldades e incoerências que o Governo criou e, ao mesmo tempo, precisa enfrentar.
 
O texto da lei refere-se à TR ora como taxa de juros (artigo 39), ora como indexador (artigo 18). A dificuldade de se determinar a natureza jurídica tem sua gênese no artigo 1°:
 
O Banco Central do Brasil divulgará Taxa Referencial (TR), calculada a partir da remuneração mensal média líquida de impostos, dos depósitos a prazo fixo captados nos bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos múltiplos com carteira comercial ou de investimentos, caixas econômicas, ou dos títulos públicos federais, estaduais e municipais, de acordo com metodologia a ser aprovada pelo Conselho Monetário Nacional, no prazo de sessenta dias, e enviada ao conhecimento do Senado Federal.”
 
As taxas de juros são costumeiramente identificadas como aquelas que possuem como objetivo promover a remuneração de determinado capital. São calculadas por quem disponibiliza o capital em benefício de outra pessoa, física ou jurídica, para que empregue para satisfação de determinada necessidade, em razão dos riscos de inadimplência tomador, das despesas que serão necessárias para realizar a operação, da expectativa de lucro, etc. [3]
 
Por sua vez, os indexadores podem ser entendidos como índices calculados a partir da variação de preços de mercado em determinado período de tempo. O objetivo está na correção dos efeitos inflacionários quando se compara valores monetários em diferentes épocas.[4]
 
O Supremo Tribunal Federal enfrentou este tema ao promover o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.°493-0-DF que discutia a adequação de diversos artigos da Lei n.° 8.177/1991 à Constituição Federal de 1988.
 
O voto do Ministro Moreira Alves, relator da ADIn, foi o condutor do julgamento assim ementado:
 
A taxa referencial (TR) não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda.”
 
Foram vencidos os Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Ilmar Galvão, que entenderam que a estrutura de cálculo da taxa referencial não era suficiente para impedir sua utilização como parâmetro de indexação da economia.
 
Enfim, o STF, naquela oportunidade, por maioria de votos, entendeu que a TR possui natureza de taxa de juros e declarou inconstitucional o artigo 18 da Lei n.° 8.177, cujo texto original estabelecia os saldos devedores e as prestações dos contratos integrantes dos Sistemas Financeiros da Habitação passariam a ser atualizados pela taxa aplicável à remuneração básica dos Depósitos de Poupança (TR).
 
Não obstante tenha o STF assentado o seu entendimento, a taxa referencial passou a ser utilizada como parâmetro para correção de diversas circunstâncias da vida cotidiana como contratos, débitos tributários e débitos trabalhistas.
 
As incoerências do texto legal acabaram por permitir que a aplicação da TR ora se desse como taxa de juros, ora como indexador, chegando ao momento em que, em 2006, publicou a lei federal n.° 11.434, que acrescentou à lei federal n.° 8.177, o artigo 18-A:
 
Art. 18-A. Os contratos celebrados a partir de 13 setembro de 2006 pelas entidades integrantes do Sistema Financeiro da Habitação – SFH e do Sistema Financeiro do Saneamento – SFS, com recursos de Depósitos de Poupança, poderão ter cláusula de atualização pela remuneração básica aplicável aos Depósitos de Poupança com data de aniversário no dia de assinatura dos respectivos contratos, vedada a utilização de outros indexadores.” (grifo nosso)
 
O Governo fez renascer o dispositivo legal declarado inconstitucional alguns anos antes. É claro que esta afirmação deve ser relativizada, pois, o STF, na ADIn n.° 493-0-DF, discutia também a retroatividade dos efeitos da lei federal n.° 8.177.
 
Na esfera do Poder Judiciário é possível encontrar inúmeras decisões que enfrentaram o tema da utilização da TR como indexador. Grande parte da jurisprudência analisada segue a orientação firmada nos votos vencidos dos Ministros do STF.
 
O Tribunal Superior do Trabalho, enfrentado a questão, editou a Orientação Jurisprudencial n.° 300 SDI-1 que afirma:
 
Não viola norma constitucional (art. 5°, II e XXXVI) a determinação de aplicação da TRD, como fator de correção monetária dos débitos trabalhistas, cumulada com juros de mora, previstos no artigo 39 da Lei nº 8.177/91 e convalidado pelo artigo 15 da Lei nº 10.192/01.”
 
Mais uma vez deparamo-nos com decisão judicial que valida a aplicação da TR como indexador. Aqui, s.m.j., estamos diante de interpretação peculiar da Justiça do Trabalho. Vejamos o artigo 39 da Lei nº 8.177/91:
 
Art. 39. Os débitos trabalhistas de qualquer natureza, quando não satisfeitos pelo empregador nas épocas próprias assim definidas em lei, acordo ou convenção coletiva, sentença normativa ou cláusula contratual sofrerão juros de mora equivalentes à TRD acumulada no período compreendido entre a data de vencimento da obrigação e o seu efetivo pagamento.” (grifo nosso)
 
Curiosamente, o voto do Ministro Moreira Alves (condutor da decisão do STF na ADIn n.° 493-0-DF), utiliza-se deste dispositivo para confirmar a construção de seu raciocínio; pois, há inequívoco uso da expressão juros para caracterizar a taxa referencial.
 
Feitas estas breves considerações e apresentadas das incoerências a respeito do tema,uma das possíveis conclusões é que atualmente encontra-se sedimentada a utilização da taxa referencial como indexador. Seja através de recorrentes decisões judiciais, seja através dapublicação de leis que tratam desta matéria, o fato concreto é que a TR tornou-se um dos instrumentos de indexação da economia.
 
Entretanto, ainda que devamos respeitar os posicionamentos de todos aqueles que afirmam que a taxa referencial possa ser utilizada como indexador, s.m.j., entendemos que não é possível atribuir a determinado mecanismo financeiro, estruturalmente criado de forma a refletir o custo primário da captação dos depósitos bancários a prazo fixo (CDB/RDB), função diversa daquela que lhe é intrínseca, qual seja, remunerar determinado capital.
 
A simples comparação da variação da taxa referencial acumulada ao longo dos últimos anos com a variação da acumulada do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, demonstra imensa distorção na comparação de valores monetários corrigidos por um e pelo outro índice.
 
Assim, em razão da estrutura de intrínseca da TR, a sua aplicação como indexador econômico produz o que se pode denomina de distorção funcional.
 
E os efeitos deste uso equivocado provocam circunstâncias práticas como a possível redução patrimonial de quem se vale da taxa referencial para correção de seus ativos.
 
Assim, entendemos que a taxa referencial (TR) criada pela Lei Federal n.° 8.177, de 01 de março de 1991, e regulamentada pela Resolução e Circular n.° 2.437, de 30 de outubro de 1997, e 3.056, de 20 de agosto de 2001, editadas respectivamente pelo Banco Central do Brasil e pelo Conselho Monetário Nacional possui natureza jurídica de taxa de juros e que seu uso como indexador provoca relevantes distorções monetárias, e que devem ser objeto de constante questionamentos perante os tribunais brasileiros.
 
Notas
[1] Vide Leitão, Miriam in Saga Brasileira, Editora Record, 2011, p. 179.
[2] Vide Leitão, Miriam in Saga Brasileira, Editora Record, 2011, p. 204.
[3] Vide Vieira Sobrinho, José Dutra in Matemática Financeira, Editora Atlas, p. 19.
[4] Vide Mankiw, N. Gregory in Introdução à Economia, Cengage Learning, 2009, p. 518.
 
Autor: Marcos Eduardo Ruiz Coelho Gomes, Advogado em São Paulo, Mestrando em Direito Urbanístico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-SP.