Gilberto Melo

O sepultamento das ações revisionais

As ações revisionais cumuladas com consignação em pagamento se tornaram prejudiciais ao consumidor, pois o benefício muitas vezes alcançado é menor do que o pago para demandar em juízo.

Resumo
Os contratos de alienação fiduciária, assim como os de arrendamento mercantil por um curto período de tempo, especialmente os relacionados a veículos, sofreram as mais diversas incisões jurisprudenciais ao longo dos últimos dez anos, de modo a adequar a legislação aos casos concretos e, de consequência, firmar um posicionamento seguro a respeito dos encargos pactuados e seus limites, seja no momento da contratação, seja com relação ao período de inadimplência.
 

Introdução
(…) a quase totalidade das ações de conhecimento para discussão de anatocismo e limitação de juros propostas são meramente protelatórias, eis que para se discutir um contrato oneroso e disposições ou cláusulas contratuais não pode existir mora, o que, entretanto, exite na maioria das lides sobre a matéria“.[1]
 
Em 27 de fevereiro de 1994, o Governo Federal publicou a Medida Provisória n.º 434 com a finalidade de lançamento do Plano Real, cujo programa objetivava a estabilização econômica e a redução drástica da inflação, mediante medidas como a desindexação econômica, privatizações, redução de tarifas de importação, equilíbrio fiscal e outras.
 
Dentre tais medidas, aquela que mais se destacou foi o contigenciamento  entre a receita e as despesas públicas, já que a arrecadação tributária não cobria os gastos de manutenção da própria Administração Pública. Na ocasião, uma das providências tomadas pelo Governo foi de manter o câmbio artificialmente valorizado, tornando R$ 1,00 (um real) igual a US$ 1,00 (um dólar) americano.
Tal mudança impactou imediatamente o mercado financeiro brasileiro, gerando então instrumentos contratuais lastreados em Dólar, exatamente porque havia uma pareação entre as moedas americana e brasileira. Assim, em tese, não havia risco, pois tanto uma moeda quanto a outra se compensavam; quem tinha dez mil reais, tinha dez mil dólares.
 
E esta manutenção do câmbio do Dólar americano a R$ 1,00 (um real) obrigava o Governo a comprar a moeda estrangeira todos os dias, numa operação do tipo day trade, utilizada para a compra de ações, denominada de over dólar, que consistia no pagamento da diferença do câmbio aos bancos captadores multinacionais, mantendo, virtualmente, a cotação estagnada.
 
Contudo, em janeiro de 1999, sem condições financeiras de bancar a paridade do Real para com o Dólar, o Governo decidiu liberar o câmbio, o que levou o mercado, imediatamente, a calcular o custo verdadeiro da moeda estrangeira, elevando a cotação para mais de R$ 3,00 (três reais) um Dólar.
 
De consequência, os contratos de Arrendamento Mercantil (Leasing) da época, todos atrelados ao Dólar, tiveram seus aluguéis, com Valor Residual Garantido – VRG diluído ou não, triplicados em função da alta da moeda estrangeira, obrigando os consumidores a procurarem o Poder Judiciário.
 
1. Nasce a ação revisional
A balbúrdia foi tão grande que, na ocasião, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo, chegou a ajuizar, perante a Justiça Federal (Protocolo n.º 1999.61.00.004437-1), uma Ação Civil Pública em desfavor de 24 (vinte e quatro) financeiras que comercializavam este tipo de produto (Leasing), visando a exclusão da cláusula contratual que vinculava o valor das prestações à cotação do Dólar americano, substituindo tal correção monetária pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Dois anos depois, em março de 2001, o Juiz Substituto Federal da 1ª Vara Cível Federal de São Paulo julgou procedente a demanda em favor da OAB/SP.
 
Do mesmo modo, inúmeros consumidores, individualmente ou em conjunto, passaram a ingressar com as chamadas Ações Revisionais de Contratos Bancários, com a finalidade de reduzir os prejuízos sofridos pela maxidesvalorização do dólar em 1999. O fundamento de tais demandas era de que o Princípio Rebus Sic Stantibus (estando as coisas assim) deveria se sobrepor ao da Pacta Sunt Servanda (os pactos devem ser respeitados), em face da Teoria da Imprevisão.
 
Ocorre que o ingresso deste tipo de ação, por si só, não garantia o direito à manutenção na posse do bem arrendado durante sua tramitação, o que levou a classe advocatícia a ingressar cumulativamente com a Consignação em Pagamento na mesma Ação Revisional. A questão acerca da possibilidade de tal reunião, já que a consignatória possuía rito especial e a revisional ordinário, chegou ao Superior Tribunal de Justiça – STJ que, já em 2003, assim decidiu: “- Admite-se a cumulação dos pedidos de revisão de cláusulas do contrato e de consignação em pagamento das parcelas tidas como devidas por força do mesmo negócio jurídico. – Quando o autor opta por cumular pedidos que possuem procedimentos judiciais diversos, implicitamente requer o emprego do procedimento ordinário” (3ª Turma, REsp 464.439/GO, Relatora Min. NANCY ANDRIGHI, DJ 23/06/03).
 
Portanto, as ações revisionais podem ser cumuladas com as consignatórias, desde que ambas se “ordinarizem”, ou seja, adotem o procedimento ordinário, mais amplo.
 
E afinal de contas, qual a necessidade da ação consignatória? É que, como as ações revisionais não possuíam medidas judiciais capazes de salvaguardar o bem arrendado, necessitando de medida cautelar acessória para tanto, a consignação em juízo do valor que o consumidor entendia justo, chamado de incontroverso[2], na mesma ação, afastava a mora e, de consequência, impossibilitava as Instituições Financeiras de obter a reintegração de posse contra o consumidor, bem como inserir seu nome nas Listas Negras de maus pagadores.
 
A consignação em pagamento funcionava, por conseguinte, como uma garantia (caução) das tutelas antecipadas pleiteadas: manutenção da posse do bem arrendado e proibição/retirada do nome do consumidor dos órgãos de proteção ao crédito.
 
Em outras palavras, enquanto o consumidor discutia as questões relativas ao contrato, ele depositava judicialmente, mês a mês, o valor das parcelas de seu arrendamento a menor, baseando-se em suas alegações de que o contrato era abusivo, o que não só afastava a mora/inadimplência provisoriamente, mas lhe garantia permanecer na posse do bem e manter seu nome fora dos órgãos de proteção ao crédito.
 
Assim, dado o sucesso deste tipo de demanda, com fulcro nos arestos publicados pelo STJ e aplicação do Código de Defesa do Consumidor – CDC a todo o tipo de contrato bancário (art. 3º, §2º da Lei n.º 8.078/90)[3], não só os contratos de arrendamento mercantil passaram a ser revistos pelo Poder Judiciário, mas os de alienação fiduciária, de cartão de crédito, de cheque especial etc.
 
Pois bem, foi a partir daí que os contratos de arrendamento mercantil (locação com opção de compra) e os de alienação fiduciária (mútuo feneratício) de veículo se tornaram frequentadores assíduos do Poder Judiciário Brasileiro. Por óbvio, os precedentes que foram abertos na época levaram os demais consumidores, sobretudo os mais astutos, a ingressarem com ações revisionais cumuladas com consignatória no intuito de reduzirem suas parcelas mensais.
 
Foi uma avalanche; o que implica em pequenos deslizamentos ainda constantes até os dias de hoje. E é sobre estes atuais que desejo manifestar.
 
2. A Descaracterização do Leasing
Naquela época, o entendimento do STJ acerca dos contratos de arrendamento mercantil, derivados do Leasing americano, era de que, ao serem introduzidos no Brasil, eles foram desvirtuados de sua verdadeira essência, sendo transformados em compra e venda à prazo, ou melhor, em financiamento disfarçado. O melhor exemplo disso foi a edição da Súmula n.º 263[4], publicada no DJ 20/05/02 e cancelada no DJ 24/09/03.
 
Durante este período de pouco mais de um ano de vigência da Súmula, os arrendamentos mercantis foram julgados como se fossem financiamento. Somente após a publicação da Súmula n.º 293 em DJ 13/05/04[5], também do STJ, este tipo de contrato voltou a ser admitido como locação com opção de compra, esta caracterizada pelo VRG, seja ele adiantado (“entrada“), diluído nas parcelas ou pago ao final (leasing verdadeiro). Assim, desde setembro de 2003, não há se falar em juros remuneratórios nem em capitalização mensal (anatocismo) nos Arrendamentos Mercantis, por se tratar de aluguel.
 
3. Os Encargos Contratuais
3.1. Os Juros Remuneratórios
Mas voltando aos financiamentos, quais eram então os encargos contratuais abusivos? Em primeiro lugar estão os juros remuneratórios, cuja finalidade é remunerar o capital emprestado pela Instituição Financeira, gerando um lucro pela prestação do serviço.
 
No início, os juros remuneratórios nas ações revisionais se fundavam, primordialmente, no revogado §3º do art. 192 da Constituição Federal – CF de 1988[6], que trazia em sua redação a proibição de inserção de juros acima de 12% (doze por cento) ao ano em quaisquer concessões de crédito no país.
 
De antemão, saliento que o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás – TJGO, acompanhando o entendimento dominante do STJ, não só admitia a aplicação do §3º do artigo retro mencionado como assim julgou diversas ações ajuizadas na época. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal – STF chegou a dizer que tal regramento não era autoaplicável, isto é, que a norma citada era de eficácia limitada, por depender de lei que a regulamentasse. No entanto, o posicionamento que vingava (STJ), em que pese o status hierárquico da Suprema Corte, era de que, mesmo que a lei existisse e a regra produzisse efeitos, ela não poderia, sob pena de ferir preceito constitucional, fixar uma taxa de juros superior a 12% ao ano.
 
Logo, todos os contratos de alienação fiduciária de veículo, assim como aqueles de arrendamento mercantil descaracterizados (entre 2002 e 2003), submetidos ao crivo do Judiciário, tiveram os juros remuneratórios reduzidos para 12% ao ano. Só para se ter uma ideia, isto significava uma redução de quase 50% (cinquenta por cento) do financiamento, o que cortava, de consequência, as prestações pela metade.
 
A título de informação, saliento que, naquela época, os causídicos tentaram, em vão, emplacar a tese de que o art. 1º da Lei de Usura[7] (Decreto n.º 22.626/33, revigorado pelo Decreto de 29/11/91) deveria ser aplicado aos contratos bancários[8]. Neste caso, o STJ entendeu que, com a criação do Conselho Monetário Nacional pela Lei n.º 4.595/64, a responsabilidade pela fixação de limites de juros seria desta nova Instituição, segundo o inciso IX[9] do seu art. 4º.
 
Contudo, em 30/05/03 foi publicada a Emenda Constitucional n.º 40 que revogou o §3º do citado art. 192 da CF, o que desencadeou uma mudança significativa na forma de encarar as Revisionais cumuladas com Consignatória.
 
Automaticamente, como não era mais possível reduzir os juros a 12% ao ano, ante a inexistência de previsão constitucional, que o STF lardeava não ser autoaplicável, os julgados dos Tribunais Superiores passam a admitir taxas de juros remuneratórios acima de 12% ao ano, o que culmina com o surgimento da Súmula n.º 296 do STJ que diz:
 
Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado[10].
 
Assim, a regra dos juros remuneratórios, que vige até a presente data, resta consolidada, mormente após a Súmula n.º 382 do STJ[11]. Passa a valer a taxa média de mercado fixada pelo Banco Central do Brasil – BACEN, a qual pode ser encontrada no sítio da própria Instituição na internet[12].
 
E como vivemos tempos de inflação levemente controlada, os limites de juros impostos pelo BACEN passaram a ser adotados pelos Bancos, o que tornou a ações revisionais cumuladas com consignatória, neste ponto, inócua.
 
Por conseguinte, os juros remuneratórios que, durante um pequeno período reduziu os contratos de financiamento de veículo pela metade, agora são mantidos, desde que dentro da taxa média de mercado do BACEN, em desfavor do Consumidor (STJ, 3ª turma, AgRg no AREsp 284.643/RS, Relator Min. SIDNEI BENETI, DJe 26/03/13 e 4ª Turma, AgRg no REsp 1.316.457/RS, Relator Min. RAUL ARAÚJO, DJe 22/03/13, por exemplo).
 
3.2. A Capitalização dos Juros
Em segundo lugar, durante muito tempo, a capitalização dos juros remuneratórios em periodicidade inferior a um ano, mais conhecida como capitalização mensal de juros, ou juros compostos, ou anatocismo, cujo método de cálculo é conhecido como Tabela Price[13], foi bravamente excluída dos contratos de financiamento de veículos.
 
Aliás, a Tabela Price foi, durante muitos anos, substituída pelo método de Gauss[14] que utiliza juros simples com capitalização anual, conforme abaixo transcrevo:
Não se fala em julgamento extra petita quando o Tribunal de origem acolhe o pedido do recorrido e afasta o método de cálculo dos juros ela Tabela Price, determinando que sejam calculados de forma simples, sem capitalização, o que se faz mediante a aplicação do postulado Gauss[15].
 
Isto porque, segundo o entendimento sedimentado no STJ, que perdurou até meados de 2011, somente os contratos celebrados após a vigência da Medida Provisória – MP n.º 1.963-17 em 31/03/00[16] poderiam aplicar a capitalização mensal de juros, desde que expressamente destacada no instrumento.
 
Neste caso, a proibição da aplicação deste método de cálculo implicava numa redução aproximada de 10% (dez por cento) da dívida integral dos financiamentos.
 
Ocorre que, o posicionamento atual adotado pelo STJ, em prejuízo, mais uma vez, do Consumidor, reconhece, como “previsão expressa” da capitalização mensal de juros, a simples inserção nos contratos de financiamento de percentual anual doze vezes (duodécuplo) maior que o mensal. Em outras palavras, se a capitalização é anual, do tipo juros simples, a taxa anual deve corresponder a doze vezes a mensal, enquanto que na capitalização mensal, com juros compostos, a taxa anual sempre será maior que a mensal multiplicada por doze meses. É ver:
 
1. Nos contratos bancários firmados após a edição da Medida Provisória nº 1.963-17/2000 (31.3.2000), é permitida a cobrança de juros capitalizados em periodicidade mensal desde que expressamente pactuada, o que ocorre quando a taxa anual de juros ultrapassa o duodécuplo da taxa mensal[17].
 
Neste sentido: STJ, 4ª Turma, AgRg no AREsp 124.888/RS, Relator Min. ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, DJe 25/03/13 e AgRg no REsp 1.196.403/RS, Relatora Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 26/02/13; 3ª Turma, AgRg no REsp 1.282.165/SC, Relator Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 05/03/13; 4ª Turma, AgRg no REsp 1.351.357/PR, Relator Min. MARCO BUZZI, DJe 21/02/13 e EDcl no AREsp 250.069/PR, Relator Min. RAUL ARAÚJO, DJe 14/02/13, além de muitos outros.
 
Conclusão: como os contratos bancários de financiamento de veículo, em sua grande maioria, inserem em seus preâmbulos as taxas anual e mensal, sendo aquela sempre maior que o duodécuplo desta última, a capitalização mensal se encontra implicitamente expressa e pode ser cobrada, em prejuízo do consumidor, não obstante seu conhecimento matemático acerca do anatocismo.
 
3.3. A Correção Monetária
Em terceiro e não menos importante, se encontra a correção monetária, cujo índice visa, como o próprio nome diz, a atualização do capital emprestado, a fim de que ele não perca seu valor real até o pagamento integral do mútuo e não sofra toda a depreciação inflacionária[18].
 
Neste caso, antigamente o STJ substituía os índices fixados nos contratos (UFIR, IPC, IPCA, Taxa SELIC, TR, IGPM, etc) pelo INPC/IBGE, por ser este “mais benéfico ao devedor” (4ª Turma, AgRg no REsp 780.581/GO, Relator Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 19/10/10). E isto ocorria porque o INPC, como até hoje, era o menor dos índices de correção monetária em vigência no país.
 
3.4. A Comissão de Permanência
E esta posição, ao longo dos anos, foi sendo lentamente modificada, oportunidade em que novos índices passaram a ser admitidos[19], ou rechaçados[20], sobretudo a comissão de permanência, que além de corrigir o capital emprestado ainda possui na sua composição juros remuneratórios e multa (STJ, 4ª Turma, AgRg no REsp 1.093.879/RS, Relator Min. ANTÔNIO CARLOS FERREIRA, Dje 22/03/13).
 
Aqui aproveito o ensejo apenas para acrescentar que, inicialmente, o STJ reconhecia a comissão de permanência como um índice de correção monetária, tanto que publicou a Súmula n.º 30[21] no sentido de que a cobrança destes dois encargos conjuntamente configurava bis in idem. Posteriormente, ao compreender que a discutida comissão já incluía em seu percentual a soma de todos os encargos contratuais, passou a não admitir sua incidência cumulada com nenhum outro encargo (juros remuneratórios, juros de mora e multa)[22].
 
Vejamos o aresto da Corte Superior que resume bem a matéria:
6. A cláusula contratual que prevê a cobrança da comissão de permanência não é protestativa, devendo ser calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, de acordo com a espécie da operação, limitada à taxa do contrato, sendo admitida, apenas, no período de inadimplência, desde que não cumulada com os encargos da normalidade (juros remuneratórios e correção monetária) e/ou com os encargos moratórios (juros de mora e multa contratual). Inteligência das Súmulas 30, 294 e 296 do STJ[23].
 
Neste diapasão: STJ, 3ª Turma, AgRg no AREsp 32.979/RS, Relator Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe 25/03/13 e AgRg no AREsp 284.643/RS, Relator Min. SIDNEI BENETI, DJe 26/03/13; 4ª Turma, AgRg no REsp 1.299.234/RS, Relator Min. MARCO BUZZI, DJe 25/03/13 e AgRg no REsp 1.288.984/RS, Relatora Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 06/03/13, além de inúmeros outros.
 
Desta maneira, como a comissão de permanência ainda costuma aparecer nos contratos de financiamento de veículo cumulada com juros de mora e/ou multa, na cláusula que prevê os ônus por atraso no pagamento das parcelas mensais, os consumidores ainda conseguem algum êxito no sentido de excluí-la, ou mantê-la sem os demais encargos, cujo reflexo não chega a 10% (dez por cento) do valor total do mútuo.
 
Aqui aproveito o ensejo apenas para salientar que a correção monetária, em face da cobrança da comissão de permanência, muitas vezes sequer aparece nos contratos de financiamento de veículo.
 
Assim, repito, juntamente com os juros remuneratórios e a capitalização, mensal ou anual, a correção monetária integra os encargos contratuais que incidem sobre as parcelas do financiamento desde o seu nascedouro, durante o período de regularidade.
 
Da mesma forma, como já dito acima, os encargos de mora, aplicáveis ao período de anormalidade ou inadimplência, são os juros de mora e a multa contratual, esta também conhecida como cláusula penal (sanção pelo descumprimento do ajuste livremente entabulado).
 
3.5. Os Juros de Mora
1. juros moratórios, aplicados separadamente sobre cada parcela do financiamento não paga, conforme o número de meses em atraso, ao contrário do que aconteceu com os juros remuneratórios, por força do art. 1.062[24] do antigo Código Civil de 1916 e Lei de Usura (art. 1º) Acabaram sendo fixados em 1% (um por cento) ao mês ou 12% (doze por cento) ao ano, assim prevalecendo até os dias de hoje. A propósito:
4- Nos contratos bancários, não regidos por legislação específica, os juros moratórios poderão ser convencionados até o limite de 1% ao mês[25]. (destaquei)
Em sentido idêntico: STJ, 4ª Turma, AgRg no REsp 1.127.566/RS, Relatora Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 23/03/12; 3ª Turma, AgRg no Ag 830.575/RS, Relator Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 08/02/08 e AgRg no AgRg no Ag 729.936/RS, Relator Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 17/09/07.
 
3.6. A Multa Contratual
A multa contratual, conforme disposição expressa no §1º[26] do art. 52 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, não pode ultrapassar 2% (dois por cento) sobre o saldo devedor, a partir da constituição em mora, seja porque as Instituições Financeiras a ele se submetem, seja em razão de o negócio jurídico ter sido celebrado após a vigência da Lei n.º 9.298 que modificou o mencionado dispositivo (02/08/96).
 
Em outras palavras, a partir de 02 de agosto de 1996, todos os contratos bancários celebrados deveriam respeitar o percentual máximo de 2% a título de multa por inadimplemento.
 
Os contratos atuais, já há um bom tempo, vêm adotando juros de mora de 1% ao mês e multa de 2% sobre o saldo devedor, o que não altera em nada as ações revisionais cumuladas com consignação em pagamento.
Conclusão
Destarte, analisando os contratos de financiamento de veículo atuais, a conclusão a que se chega é a de que:
a) os juros remuneratórios se encontram dentro da taxa média de mercado do Banco Central do Brasil, não havendo se falar em redução para 12% ao ano;
b) a capitalização mensal de juros, admitida desde x, se encontra expressa, uma vez que a taxa anual é sempre maior do que doze vezes (duodécuplo) a mensal;
c) a correção monetária, se existente, deve ser fixada com base no INPC;
d) a comissão de permanência pode ser cobrada, no período de inadimplência, desde que não cumulada com nenhum outro encargo, o que tem sido o único ponto controvertido nos contratos de financiamento de veículo hoje em dia;
e) os juros de mora, assim como a multa contratual, não podem ultrapassar 1% ao mês e 2% sobre o saldo devedor, respectivamente, o que vem sendo obedecido pelas Instituições Financeiras;
f) a liminar é negada, na sua grande maioria, por falta de concatenação dos fatos alegados com a jurisprudência dominante do STJ.
 
Assim, como os contratos recentes praticamente não possuem irregularidades, o consumidor não consegue obter a liminar para proteger seu nome e se manter na posse do veículo, como não vence a ação ao final e ainda é condenado a pagar os honorários de advogado da parte contrária. Ademais, com o término da demanda, como ele depositou valores inferiores ao contratado, ainda terá de arcar com a diferença de todas as prestações pagas a menor, agora corrigidas pelos encargos contratados.
 
Isto sem contar que o instrumento contratual é imprescindível para o ajuizamento da ação revisional cumulada com consignatória, o qual deve ser obtido mediante cautelar preparatória de exibição de documentos, pois sem ele não há como verificar se os encargos realmente estão abusivos, o que prejudica severamente a concessão da liminar.
Portanto, suponhamos que um consumidor decida ingressar hoje com uma ação revisional cumulada com consignatória; a única providência que o Magistrado poderá autorizar é o depósito judicial do valor incontroverso (a menor) das parcelas mensais, a título de consignação em pagamento, por se tratar de direito de ação. As tutelas antecipadas, de retirada ou proibição de inserção do nome dos órgãos de proteção ao crédito e manutenção na posse do veículo, que antigamente eram facilmente concedidas, serão negadas porque as alegações trazidas pelo consumidor não coadunam com a jurisprudência dominante do STJ, seja por falta do contrato, seja porque este se encontrar regular, como já dito.
 
Além disso, sem a liminar protetiva, o consumidor ajuiza a ação revisional, consigna em juízo o valor que pretende, vê seu nome ser inserido legalmente nos cadastros de maus pagadores e ainda sofre o revés de ser demandado em ação de busca e apreensão e poder perder a posse do veículo.
 
Seguem abaixo os julgados neste sentido:
1. É inviável rediscutir, na via estreita do recurso especial, o preenchimento dos requisitos que levaram a Corte Estadual a negar a tutela de urgência, porquanto o simples ajuizamento de ação revisional para discutir a legalidade de cláusulas contratuais não constitui, por si só, fundamento suficiente para descaracterizar a mora (REsp n.º 1.042.845/RS, rel.ª Min.ª Nancy Andrighi, DJ de 28/05/2008), mormente quando o valor ofertado mostrar-se inverossímil frente ao valor devido objeto do contrato[27].
 
2. O simples ajuizamento de ação pretendendo a revisão de contrato não obsta a ação de busca e apreensão. Incidência da Súmula 83/STJ[28].
 
3. O simples ajuizamento de ação revisional, com a alegação da abusividade das cláusulas contratadas, não importa no reconhecimento do direito do contratante à antecipação da tutela, sendo necessário o preenchimento dos requisitos do art. 273 do Código de Processo Civil[29].
 
Logo, as ações revisionais cumuladas com consignação em pagamento se tornaram prejudiciais ao consumidor, pois o benefício muitas vezes alcançado é menor do que o pago para demandar em juízo.
 
Notas
[1] –  FRÓES, Marco Aurélio (Desembargador aposentado do TJRJ). O preço do dinheiro. Revista Justiça & Cidadania, edição 151, março de 2013, Editora JC, pág. 32.

[2] – Incontroverso porque se referia a um determinado valor que o devedor se propunha a pagar, não obstante os excessos contratuais questionados por ele em Juízo.

[3] – Súmula n.º 297 do STJ, publicada no DJ 09/09/04.
 
[4] – A cobrança antecipada do valor residual (VRG) descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil, transformando-o em compra e venda a prestação. (OBSERVAÇÃO: julgando os RESPs 443.143-GO e 470.632-SP, na sessão de 27/08/03, a 2ª Seção deliberou pelo CANCELAMENTO da Súmula n.º 263).
 
[5] – A cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG) não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil.
 
[6] – Art. 192 (…) 3º – As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.
 
[7] – Art. 1º. É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. 1062). Já o art. 1.062 do Código Civil de 1916 salientava que “a taxa dos juros moratórios, quando não convencionada (art. 1.262), será de seis por cento ao ano”.
 
[8] – Súmula n.º 596 do STF, publicada no DJ de 05/01/77, que menciona: “as disposições do Decreto 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”.
 
[9] – “Art. 4º (…) IX – limitar, sempre que necessário as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra norma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros, inclusive os  restados pelo Banco Central da República do Brasil (…)“.
 
[10] – Súmula n.º 296 do STJ, publicada em DJ 09/09/04.
 
[11] – Súmula 382 do STJ publicada no DJe 08/06/09: A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade.
 
[12] – Entre no sítio: e clique no item “Pessoa física: Taxas pré-fixadas – Aquisição de veículos”, por exemplo.
 
[13]Tabela Price, também chamado de sistema francês de amortização, é um método usado em amortização de empréstimo cuja principal característica é apresentar prestações (ou parcelas) iguais. O método foi apresentado em 1771 por Richard Price em sua obra “Observações sobre Pagamentos Remissivos” (…). O método foi idealizado pelo seu autor para pensões e aposentadorias. No entanto, foi a partir da 2ª revolução industrial que sua metodologia de cálculo foi aproveitada para cálculos de amortização de empréstimo. A Tabela Price usa o regime de juros compostos para calcular o valor das parcelas de um empréstimo e, dessa parcela, qual é a proporção relativa aos pagamentos dos juros e a amortização do valor emprestado. FONTE: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Tabela_Price).
 
[14] – Johann Carl Friedrich Gauss (Braunschweig, 30 de Abril de 1777 – Göttingen, 23 de Fevereiro de 1855), foi um matemático, astrônomo e físico alemão que contribuiu muito em diversas áreas da ciência, dentre elas a teoria dos números, estatística, análise matemática, geometria diferencial, geodésia, geofísica, eletroestática, astronomia e óptica. FONTE: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Friedrich_Gauss).
 
[15] – STJ, 3ª Turma, AgRg no AREsp 120.438/SP, Relatora Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 04/02/13).
 
[16] – Art. 5º.  Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano (atualmente em vigor como MP n.º 2.170-36/01).
 
[17] – STJ, 4ª Turma, AgRg no REsp 1.231.210/RS, Relator Min. RAUL ARAÚJO, DJe 01/08/11.
 
[18] – Atualmente, a caderneta de poupança é corrigida em 6,17% ao ano + os juros da Taxa Referencial – TR se a Taxa Selic superar 8,5% ao ano ou de 70% da Taxa Selic + os juros da TR se a Selic for de 8,5% ao ano ou menor. FONTE: Medida Provisória n.º 567/12 ou no sítio: http://www.portalbrasil.net/2012/economia/poupanca_novasregras.htm.
 
[19] – Súmula n.º 288 do STJ, publicada no DJ 13/05/04 – “A Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pode ser utilizada como indexador de correção monetária nos contratos bancários“. Segundo o STJ, a TJLP é semelhante à TR, razão pela qual, se livremente contratada, pode ser cobrada.
 
[20] – Súmula n.º 287 do STJ, publicada no DJ 13/05/04 – “A Taxa Básica Financeira (TBF) não pode ser utilizada como indexador de correção monetária nos contratos bancários“. Isto porque a TBF, de acordo com a MP n.° 1.053/95, só pode ser “utilizada exclusivamente como base de remuneração de operações realizadas no mercado financeiro“.
 
[21] – Súmula n.º 30 do STJ, publicada no DJ 18/10/91 – “A comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis“.
 
[22] – Súmula n.º 472 do STJ, publicada no DJe 19/06/12 – “A cobrança de comissão de permanência – cujo valor não pode ultrapassar a soma dos encargos remuneratórios e moratórios previstos no contrato – exclui a exigibilidade dos juros remuneratórios, moratórios e da multa contratual“.
 
[23] – STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp 1.052.866/MS, Relator Min. VASCO DELLA GIUSTINA (Desembargador convocado do TJ/RS), DJe 03/12/10.
 
[24] – Art. 1.062 (CC/16) – A taxa dos juros moratórios, quando não convencionada (Art. 1.262), será de 6% (seis por cento) ao ano. Esta regra, cumulada com a proposição da Lei de Usura acabou elevando o percentual de 0,5% (meio por cento) ao mês para 1%.
 
[25] – STJ, 3ª Turma, AgRg no AREsp 220.828/RS, Relator Min. SIDNEI BENETI, DJe 05/10/12.
 
[26] – Art. 52 (…) §1° – As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação.(Redação dada pela Lei nº 9.298, de 1º.8.1996).
 
[27] – STJ, 4ª Turma, AgRg no REsp 1.336.896/MS, Relator Min. MARCO BUZZI, DJe 05/04/13.
 
[28] – STJ, 4ª Turma, AgRg no AREsp 272.721/MS, Relatora Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 13/03/13.
 
[29] – STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp 1.336.901/MS, Relator Min. SIDNEI BENETI, DJe 05/10/12
Autor: Geraldo Fonseca Neto é assistente de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, professor convidado da graduação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO e da Faculdade Cambury de Goiânia, professor convidado da pós-graduação da Universidade de Rio Verde – FESURV e da Faculdade Montes Belos – FMB, formado em Direito pela PUC-GO, advogou durante 9 anos, possui especialização em Direito Penal pela Universidade Federal de Goiás – UFG e, atualmente, faz mestrado em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO.