Gilberto Melo

O mutuário do SFH visto como um verdadeiro “mortuário”

As ilações auferidas em decisões do TRF-4 e da JF-RS sobre a existência de anatocismo, por decorrência da aplicação do sistema de amortização da Tabela Price, em contratos do SFH – em que pese o poder subjetivo do decisor em formalizar conceito acerca de temas postos à apreciação do Judiciário – estão a merecer reflexão de maior envergadura do que a simplicidade que tem se constatado, no teor emergente dos julgamentos realizados.
 
Que o sistema de amortização da Tabela Price é perfeito, como forma de desenvolvimento de amortização de uma dívida, não há que se cogitar em contrário.
 
Entretanto, conjugar o sistema da amortização da TP em contratos do SFH, resulta em gritante diferença, em comparação com o referido no parágrafo anterior. A Price exige do julgador a efetiva observância dos elementos “juros compostos” e “amortização negativa”.
 
Os juros compostos, em que pese os decisores da Justiça Federal do RS relegarem exame dessa peculiaridade, leva à constatação, por parte dos mutuários do SFH, de um misto de medo, dada a irrelevância aos propósitos da razão do questionamento da existência de anatocismo em contratos daquele sistema.
 
Observada a fórmula da Price, os juros compostos estão no DNA daquela. Isso leva, inexoravelmente, à situação de exponenciação dos juros. Ou seja, em linguagem matemática inconteste, juros sob juros resulta na capitalização de juros, o que é vedado expressamente pelo art. 4º da Lei de Usura, sob qualquer forma e periodicidade, no âmbito do SFH.

Essa capitalização de juros corresponde à manutenção de uma progressão geométrica no desenvolvimento da dívida.  Enquanto que os juros simples desenvolvem uma progressão aritmética, permitindo assim, o regular desenvolvimento de uma dívida, e a conseqüente possibilidade do seu pagamento no prazo ajustado. Assim, vai se constatar que a capitalização dos juros leva ao anatocismo, pela parcela de juros amortizados negativamente.

Ou seja, é o que não foi pago ao agente financeiro e que servirá de base para o cômputo da parcela mensal de juros no mês subseqüente, e assim por diante.
 
Adentrando no repositório de jurisprudência do TRF-4, não se encontra nenhum julgado que examina a capitalização dos juros, por decorrência de existir isso na própria formulada Price. Os julgados, na sua totalidade, limitam-se, quando muito, a constatar amortizações negativas, e isso, aos olhos dos julgadores, seria anatocismo. Evidente, que esse raciocínio é simplista e se aproxima mais do simplório.

Via de conseqüência, as decisões proferidas relegam o axioma do ministro Sávio de Figueiredo, de que “o progresso da Ciência Jurídica, já aos fins do século XX, exige do decisor a consideração da verdade real em detrimento da verdade ficta”. E identificar anatocismo, apenas quando existente amortização negativa, é considerar uma verdade ficta.
 
De outra banda, causam perplexidade as arraigadas intenções dos decisores do TRF-4 em preservar, ainda que em prejuízo da parte hipossuficiente da relação contratual, as condições originalmente pactuadas, em homenagem ao princípio da pacta sunt servanda. Evidente que se nenhuma deturpação dessas condições pactuadas cause prejuízo às relações contratuais firmadas, devem as mesmas ser mantidas em homenagem ao princípio da lisura do pactuado.
 
Entretanto, identificada numa relação contratual, como é o caso de contratos do SFH com a Price, não há que se falar em preservação das condições contratuais pactuadas. Tenha-se presente, ainda, que desde o surgimento da Lei de Usura e da Súmula nº 121, do STF, as instituições financeiras, repetidamente, inserem a Tabela Price nas dívidas, sem que contra isso houvesse contestação por parte dos devedores.
 
Nem por isso, entretanto, desde que constatado o anatocismo em dívidas do SFH, com o brilhante “pontapé” do então desembargador Adão José Cassiano do Nascimento, que prematuramente se aposentou no TJRS, começou-se a questionar aquelas verdades fictas, arraigadamente defendidas pelas instituições mutuantes.

O que aconteceu com o entendimento exposto nos julgados do magistrado Cassiano?

Começaram os questionamentos acerca da efetiva constatação de anatocismo, em dívidas do SFH, assinalando essa anomalia a causa primeira de uma verdade maior, que é o não pagamento da dívida como contratada no prazo ajustado.
 
A reflexão sobre esses pontos inevitavelmente obriga aos decisores que tenham presente que nessa relação mutuante/mutuário, já por decorrência do CDC, deve a parte mais fraca merecer acuidade e proteção diante de uma postura centenária das instituições financeiras, em apropriarem lucros a qualquer custo.
 
A um dado momento – o que só ocorre na JF no RS, e não na Justiça Estadual – os decisores de 1º e 2º graus “optaram” pelo “entendimento” de que o questionamento de anatocismo, em contratos do SFH, seria matéria de Direito, dispensando-se provas. E mais: de que a prova é destinatária ao juiz, e só a ele cabe refutar tal pretensão.
 
Em contraposição a isso, entende o STJ, com centenas de julgados, quando aportam recursos àquela corte, tocante ao anatocismo, haverá a necessidade de revolvimento de cláusula contratual, o que é vedado por súmula daquele tribunal. À luz do entendimento daquela corte, o anatocismo só será admissível, no direito brasileiro, em casos que a lei autoriza, como o crédito rural o crédito comercial e o crédito industrial. Nada mais.
 
Disso tudo, ressai o quê ? A prevalecer o entendimento de que o exame acerca do anatocismo da Price é matéria de direito, se o mutuário for atrelado à CEF, em ultima análise, ou ele encontra recursos sobre-humanos de pagar o indevido por força do anatocismo advindo da TP, ou ele sofre um sinistro, ou, ele perderá sua casa.
 
Na Justiça Estadual, com reduzida significância, são notórias as decisões que não reconhecem que a TP contenha erro. Isto só ocorrerá em contratos do SFH, tudo porque a exponenciação de juros leva a capitalização destes. Via de conseqüência, será a dívida, como bem dito pelo insigne magistrado aposentado Cassiano, uma “mera conta de chegada”.
 
Há que se consignar, ainda, que a doutrina está bordada de “matemáticos de plantão”, que discorrem a inexistência de ilegalidade ou de anatocismo no desenvolvimento da TP. Causa repulsa que um profissional da matemática, ou do Direito, tenha a insensatez de afirmar tamanha heresia matemática-jurídica.

A tanto se acresce um fato que chega as raias do absurdo: indefere–se prova pericial porque o entendimento dos decisores, no RS, na JF, de que identificar anatocismo e quantificar valores  trata-se de “matéria de Direito”.
 
Por fim, considerando que a própria planilha de evolução do financiamento anexada com as exordiais, e fornecida pelo mutuante, aponta amortizações negativas mensais, há de se questionar essa situação “gaudéria” adotada em decisões da JF-RS. Referimo-nos àquelas em que os decisores imbuídos de “preservar as condições contratadas”, opta por edificar uma anomalia jurídica mais grave: determinam que se houver amortizações negativas (e isto é decorrência da multiplicação de juros sobre juros), deve-se apartar em conta separada esses juros não pagos, para que, ao final do prazo de financiamento, o mutuário pague a sua dívida, mais esse escorchante saldo apartado, que nada mais é  do que o efetivo anatocismo incutido na dívida.

Será, mesmo, que a pequenez desse raciocínio está aplicando a justiça sem levar em conta qualquer uma das partes ? Quem perde com isso ? Quem ganha com isso ? Essas respostas não exigem qualquer esforço de raciocínio para chegar-se à conclusão daquela expressão que um matemático renomado qualificou o mutuário do SFH de verdadeiro “mortuário”.  

Fonte: www.espaçovital.com.br