Gilberto Melo

Decisão do STJ dá mais força à lei de recuperação judicial

O Superior Tribunal de Justiça está decidido a fazer valer o enunciado da Lei de Recuperação Judicial, não permitindo a interferência da Justiça do Trabalho nos planos de recuperação de empresas em dificuldades e dando a estas um prazo maior para que não sofram execuções judiciais. A idéia do tribunal é permitir que a empresa se recupere de fato e não apenas que os mecanismos da nova lei sejam uma breve sobrevida.

Decisão tomada pela 2ª Seção do STJ, na semana passada, mostra esse intuito. Por unanimidade, os ministros decidiram que o juiz trabalhista não pode determinar a desconsideração da personalidade jurídica para bloquear os bens dos sócios e da empresa. E que o prazo de 180 dias para que as execuções contra a empresa fiquem suspensas pode ser prorrogado. A decisão (confira abaixo) foi tomada em julgamento de Conflito de Competência suscitado pelo juiz da 3ª Vara de Matão, no interior de São Paulo.

O relator do processo no STJ, ministro Luis Felipe Salomão, afirmou à revista Consultor Jurídico que o objetivo da decisão é o de preservar os bens, não para beneficiar os sócios, mas para que eles possam garantir o processo de recuperação. “A Justiça deve observar a função social da empresa e garantir os meios para que ela possa reerguer e manter os empregos que gera”, disse.

Em seu voto, o ministro ressaltou que no conflito entre a tentativa de recuperar a empresa e o pagamento dos créditos trabalhistas, deve prevalecer a primeira opção. “O valor que prepondera é o da preservação da empresa, até mesmo para, depois, se levantar recursos para o pagamento dos empregados”, afirma. Para Luis Felipe Salomão, “permitir que ‘cada um defenda o seu crédito’ implica em colocar abaixo o princípio nuclear da recuperação, que é o do soerguimento da empresa”.

O entendimento é o de que as execuções individuais contra a empresa — trabalhistas ou não — só devem prosseguir depois dos 180 dias de suspensão previstos em lei no caso de o plano de recuperação não ter sido aprovado. Mas se há plano de recuperação em curso regular, todos os créditos devem se submeter a ele, inclusive os trabalhistas.

Segundo o relator do processo, “a prudência recomenda concentrar no juízo da recuperação judicial todas as decisões que envolvam o patrimônio da recuperanda, a fim de não comprometer a alternativa de mantê-la em funcionamento”.

A decisão da 2ª Seção do STJ foi unânime ao reconhecer a competência do juiz da 3ª Vara de Matão para decidir sobre os atos referentes à recuperação, em detrimento da Vara do Trabalho local, que havia bloqueado os bens da empresa. “Até mesmo em relação à possível extensão dos efeitos e responsabilidades aos sócios, melhor que o juízo da recuperação judicial, a luz dos fatos que ensejaram a crise empresarial, avalie quanto a seu cabimento”, afirmou o ministro Salomão.

O ministro João Otávio de Noronha — que também votou pela competência do juízo de recuperação para decidir sobre qualquer questão que envolva o patrimônio da empresa — disse à revista Consultor Jurídico que a empresa transcende o interesse dos empresários e, por isso, tem de ser preservada. “É da empresa que emergem os empregos e os tributos que financiam a sociedade. E é a empresa que demanda pesquisas em universidades, o que gera avanços tecnológicos”.

Para Noronha, permitir que as execuções trabalhistas sejam retomadas individualmente acaba com as chances de recuperação da empresa. “Não se pode fazer um planejamento no juízo de recuperação e ver esse planejamento todo ser esvaziado por decisões da Justiça Trabalhista, até porque o empregado também tem interesse na recuperação da empresa e, conseqüentemente, na manutenção do emprego”, afirmou.

Para o juiz Carlos Henrique Abrão, da 42ª Vara Cível de São Paulo, a decisão do STJ é salutar. Estudioso da recuperação judicial, foi Abrão quem comandou o processo que manteve a Parmalat em funcionamento no Brasil, depois que a matriz na Itália pediu falência. “O prazo de 180 dias de suspensão das execuções é exíguo e deve ser prolongado. Permitir atos de execução da Justiça do Trabalho prejudica o plano de recuperação porque elimina o fluxo de caixa da empresa”, considera o juiz.

O paradigma

A lei de recuperação judicial decolou no Caso Varig, também graças a uma decisão da 2ª Seção do STJ. O relator do caso, ministro Ari Pargendler, decidiu que a Vara Empresarial do Rio de Janeiro seria responsável por conduzir as execuções e todos os atos que diziam respeito à recuperação. O conflito surgiu quando a Justiça do Trabalho fluminense determinou o arresto de bens e direitos da Varig.

Os ministros consideraram que dois juízos não podem decidir de modo diverso sobre o mesmo patrimônio. E fixaram a expressão do “juízo universal da recuperação”.

Leia a ementa da decisão e, em seguida, o relatório e o voto do ministro Luis Felipe Salomão

EMENTA

CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. COMERCIAL. LEI 11.101/05. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO DEFERIDO.

1. A DECISÃO LIMINAR DA JUSTIÇA TRABALHISTA QUE DETERMINOU A INDISPONIBILIDADE DOS BENS DA EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL, ASSIM TAMBÉM DOS SEUS SÓCIOS, NÃO PODE PREVALECER, SOB PENA DE SE QUEBRAR O PRINCÍPIO NUCLEAR DA RECUPERAÇÃO, QUE É A POSSIBILIDADE DE SOERGUIMENTO DA EMPRESA, FERINDO TAMBÉM O PRINCÍPIO DA “PAR CONDITIO CREDITORUM”.

2. É COMPETENTE O JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL PARA DECIDIR ACERCA DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA RECUPERANDA, TAMBÉM DA EVENTUAL EXTENSÃO DOS EFEITOS E RESPONSABILIDADES AOS SÓCIOS, ESPECIALMENTE APÓS APROVADO O PLANO DE RECUPERAÇÃO.

3. OS CRÉDITOS APURADOS DEVERÃO SER SATISFEITOS NA FORMA ESTABELECIDA PELO PLANO, APROVADO DE CONFORMIDADE COM O ART. 45 DA LEI 11.101/2005.

4. NÃO SE MOSTRA PLAUSÍVEL A RETOMADA DAS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS APÓS O MERO DECURSO DO PRAZO LEGAL DE 180 DIAS.

CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA 3ª VARA DE MATÃO/SP.

Leia o relatório e o voto

CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 68.173 – SP (2006/0176543-8)

RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO

AUTOR: AGRI-TILLAGE DO BRASIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE MÁQUINAS E IMPLEMENTOS AGRÍCOLAS LTDA

ADVOGADO: TACITO EDUARDO OLIVEIRA GRUBBA E OUTRO(S)

SUSCITANTE: JUÍZO DE DIREITO DA 3A VARA DE MATÃO – SP

SUSCITADO: JUÍZO DA VARA DO TRABALHO DE MATÃO – SP

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO:

AUTOR: AGRI-TILLAGE DO BRASIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE MÁQUINAS E IMPLEMENTOS AGRÍCOLAS LTDA

ADVOGADO: TACITO EDUARDO OLIVEIRA GRUBBA E OUTRO(S)

SUSCITANTE: JUÍZO DE DIREITO DA 3A VARA DE MATÃO – SP

SUSCITADO: JUÍZO DA VARA DO TRABALHO DE MATÃO – SP

RELATÓRIO

O SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO:

Cuida-se de conflito positivo de competência instaurado entre os Juízos de Direito da 3º Vara de Matão/SP, suscitante, e da Vara do Trabalho de Matão/SP, suscitado, nos autos do pedido de recuperação judicial formulado pela empresa Agri-Tillage do Brasil — Indústria e Comércio de Máquinas e Implementos Agrícolas Ltda.

O Juiz de Direito da 3ª Vara da Comarca de Matão/SP, em 30/06/2006, deferiu o processamento da recuperação judicial da empresa, determinando a suspensão de todas as ações e execuções, bem como dos respectivos prazos prescricionais. (fls. 19 e 67)

A Juíza do Trabalho de Matão, em 07/07/2006, nos autos da ação cautelar proposta pelo Ministério Público do Trabalho, deferiu parcialmente a liminar e determinou a indisponibilidade dos bens móveis e imóveis encontrados em nome da empresa e de seus sócios, de modo a assegurar o pagamento das verbas rescisória dos trabalhadores dispensados. (fls. 21/24 e 69/72)

O Juízo Comum Estadual suscitou, então, o presente conflito de competência, consignando que:

“A determinação sobre a indisponibilidade dos bens da recuperanda, pode inviabilizar a realização do plano de recuperação. Ademais, embora de vigência recente a nova disciplina legal, considerando a experiência colhida ao longo dos anos de vigência do Decreto-Lei 7.661/45, prudente concentrar no Juízo da recuperação judicial todas as decisões a respeito da recuperanda, sob pena de inviabilizar-se definitivamente, suas atividades.”

O Ministério Público Federal, em parecer do Subprocurador-Geral da República Maurício de Paula Cardoso, opinou pelo conhecimento do conflito, para que seja declarado competente o Juízo de Direito da 3ª Vara de Matão/SP.

Em apenso, Reclamação e Medida Cautelar propostas pela empresa em recuperação.

Em 14/12/2006, o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, apreciando a Medida Cautelar nº 12.327/SP, concedeu parcialmente o pedido liminar, nos seguintes termos:

“Em sede de cognição sumária, merece acolhida o pleito liminar; segundo aflora dos autos, a decisão oriunda da Justiça do Trabalho acabará por atingir e, por conseguinte, alterar o plano de recuperação da requerente, já apresentado perante o juízo da recuperação judicial e com assembléia de credores marcada para o início de 2007.
O fumus boni júris se materializa na medida em que o art. 6º, caput, c.c. o § 2º, da Lei 11.101/2005, determina que o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, destacando que as ações de natureza trabalhista serão processadas perante a justiça especializada “até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença”.

Conquanto não mereça maiores digressões, jungido a esse pressuposto, o perigo da demora na fixação da competência é evidente, uma vez que, como já ressaltado, a decisão da Justiça Obreira irá refletir e alterar o plano de recuperação, prestes a ser discutido pela assembléia de credores.

Já existem, nesta Corte Superior de Justiça, precedentes monocráticos de liminares deferidas: CC 73.380/SP, de minha Relatoria, DJ de 17.11.2006; CC 74.659/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 30.11.2006.

3. Quanto à pretensão acrescida, vale consignar que o acolhimento do pleito liminar alcançará as demandas trabalhistas em virtude das quais se instaurou o Conflito de Competência 68.173/SP, isto é, aquelas que têm curso perante o juízo suscitado.

Pelo que precede, concedo parcialmente a liminar, para cassar a que foi deferida pelo Juízo Trabalhista e suspender a referida medida cautelar, que está em andamento perante o MM. Juízo da Vara do Trabalho da Comarca de Matão (SP), até o desfecho do referido conflito.”

Dos autos da Reclamação nº 2.699/SP consta cópia da decisão que homologou o plano de recuperação da empresa devedora em 15/02/2007. (fls. 256/262)

É o relatório.

VOTO

O SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):

1. A controvérsia gira em torno da definição do foro competente para decidir as questões que digam respeito ao patrimônio de empresa em recuperação judicial.

Dispõe o § 2º do art. 6º da Lei nº 11.101/05:

Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.
(…)

§ 2º É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8º desta Lei, serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença.” (grifos nossos)

2. Segundo regulamenta a legislação de regência, as ações de natureza trabalhista serão julgadas na Justiça do Trabalho até a apuração do respectivo crédito, cujo valor será determinado em sentença e, posteriormente, inscrito no quadro-geral de credores.

A prudência recomenda concentrar no juízo da recuperação judicial todas as decisões que envolvam o patrimônio da recuperanda, a fim de não comprometer a alternativa de mantê-la em funcionamento.

Destarte, deferido o processamento da recuperação judicial, ao Juízo Laboral compete tão-somente a análise da matéria referente à relação de trabalho, ficando a cargo do Juízo da recuperação judicial todo o questionamento acerca da satisfação do crédito respectivo, nele incluído eventual indisponibilização de bens.

3. Ultrapassada essa questão, passa-se à interpretação dos §§ 4º e 5º, do art. 6º da Lei 11.101/05, no ponto em que trata da suspensão das ações e execuções após deferido o processamento da recuperação judicial do devedor

O dispositivo ostenta a seguinte redação:

“Art. 6º (…)
§ 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o “caput” deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

§ 5º Aplica-se o disposto no § 2º deste artigo à recuperação judicial durante o período de suspensão de que trata o § 4º deste artigo, mas, após o fim da suspensão, as execuções trabalhistas poderão ser normalmente concluídas, ainda que o crédito já esteja inscrito no quadro-geral de credores.”

Examinando a questão, o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, quando do julgamento do Conflito de Competência nº 73.380/SP de que foi relator, assim se pronunciou:

“A aparente clareza dos mencionados preceitos traduz a preocupação do legislador de evitar — a todo custo — que o instituto da recuperação judicial seja utilizado como estratagema para que a empresa em recuperação não pague seus credores e venha até mesmo a aumentar o volume das dívidas, uma vez que continua em operação;esconde, todavia, uma particularidade de ordem prática: caso voltem a ter curso várias execuções individuais, com determinação de penhoras sobre bens e/ou faturamento, ou mesmo ocorrendo venda de bem do patrimônio, como poderá o administrador judicial cumprir o plano de recuperação aprovado pelos credores e homologado judicialmente?” (grifos nossos)

Como bem ressaltou o saudoso Ministro, tal questionamento não passou desapercebido por esta 2ª Seção por ocasião do julgamento do Conflito de Competência nº 61.272/RJ, relator o Ministro Ari Pargendler, “leading case” sobre a nova Lei de Recuperação Judicial e Falência. Julgando o agravo regimental interposto contra a decisão concessiva de liminar no referido conflito, ressaltou o Eminente Ministro:

“A jurisprudência formada à luz do Decreto-Lei nº 7.661, de 1945, concentrou no juízo da falência as ações propostas contra a massa falida no propósito de assegurar a igualdade dos credores (pars condicio creditorum), observados evidentemente os privilégios e preferências dos créditos.

 Quid, em face da Lei 11.101, de 2005? Nova embora a disciplina legal, a medida liminar deferida nestes autos partiu do pressuposto de que subsiste a necessidade de concentrar na Justiça Estadual as ações contra a empresa que está em recuperação judicial, agora por motivo diferente: o de que só o Juiz que processa o pedido de recuperação judicial pode impedir a quebra da empresa. Se na ação trabalhista o patrimônio da empresa for alienado, essa alternativa de mantê-la em funcionamento ficará comprometida.

A exigência de que o processo de recuperação judicial subsista até a definição de quem é o juiz competente para decidir a respeito da sucessão das obrigações trabalhistas impõe, salvo melhor entendimento, a manutenção da medida liminar.”

A doutrina não é uníssona.

Para Mauro Rodrigues Penteado:

“(…) os créditos trabalhistas ajuizados e já em fase de execução prosseguem, ‘após o fim da suspensão’, até serem ‘normalmente concluídas, ainda que o crédito já esteja inscrito no Quadro-Geral de Credores.’ O que vale dizer que tais demandas, que já corriam contra o devedor, sob a supervisão do administrador judicial, prosseguem em fase de execução até solução final. A dedução que se tira do dispositivo é a de que o pagamento dos valores relativos àquelas execuções trabalhistas será equacionado, no chamado stay period, com vistas à viabilização do Plano respectivo.” (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência — Lei 11.101/05, Coordenação— Francisco Sátiro de Souza Júnior e Antônio Sérgio A. De Moraes Pitombo, RT, 2007, p. 140)

Sérgio Campinho entende que:

“Para as execuções em curso de créditos derivados da relação de trabalho há situação mais especial ainda. Durante o período de suspensão das ações, as execuções de natureza trabalhista ficarão paralisadas, mas após o seu término, retornarão ao curso normal, podendo ser concluídas, ainda que o crédito já se encontre inscrito no quadro-geral de credores da recuperação judicial. (…) Parece-nos aí evidente a garantia com que o legislador resolveu agraciar os créditos trabalhistas em execução. (…) após o interregno, pretendeu o legislador assegurar o eventual prosseguimento de tais execuções, talvez porque o plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a um ano para o pagamento dos créditos trabalhistas vencidos até a data do pedido de recuperação judicial, desejando o legislador, com a providência, estimular o pronto atendimento daqueles em fase executiva.” (Falência e Recuperação da Empresa, Renovar, 2006, págs. 146/147)

Na mesma linha, Carlos Roberto Fonseca de Andrade sustenta que:

“Não se vislumbra, salvo de lege ferenda, como ultrapassar o prazo peremptório de natureza legal, por maiores e melhores que sejam os motivos, diante da dicção tão clara e categórica do texto de lei, prazo este que nem ‘ao Juiz é permitido prorrogar’.” (A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas — Lei nº 11.101/05, Coordenador Paulo Penalva Santos, Forense, 2006, pág. 89)

Fábio Ulhoa Coelho, no entanto, manifesta entendimento no sentido de que as execuções prosseguem apenas na hipótese de não haver sido aprovado o plano de recuperação judicial, ou se apresentado sem mudança nas condições de exigibilidade dos créditos, do contrário, as dívidas são novadas e serão pagas segundo as regras nele estipuladas.

Para o ilustre doutrinador:

Se a suspensão das execuções contra o falido justifica-se pela irracionalidade da concomitância de duas medidas judiciais satisfativas (a individual e a concursal) voltadas ao mesmo objetivo, na recuperação judicial o fundamento é diverso.

Suspendem-se as execuções individuais contra o empresário individual ou sociedade empresária que requereu a recuperação judicial para que eles tenham o fôlego necessário para atingir o objetivo pretendido da reorganização da empresa. A recuperação judicial não é execução concursal e, por isso, não se sobrepõe às execuções individuais em curso. A suspensão, aqui, tem fundamento diferente. Se as execuções continuassem, o devedor poderia ver frustrados os objetivos da recuperação judicial, em prejuízo, em última análise, da comunhão de credores.

Por isso, a lei fixa um prazo para a suspensão das execuções individuais operada pelo despacho de processamento da recuperação judicial: 180 dias. Se, durante esse prazo, alcança-se um plano de recuperação judicial, abrem-se duas alternativas: o crédito em execução individual teve suas condições de exigibilidade alteradas ou mantidas. Nesse último caso, a execução individual prossegue.” (Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Saraiva, 2008, págs. 38/39)

Na mesma linha, também sustenta Manoel Justino Bezerra Filho:

“Na forma do caput do art. 6º, a suspensão se inicia com o deferimento do processamento da recuperação judicial, despacho previsto no art. 52. Este despacho do art. 52 não se confunde com o momento no qual o juiz concede a recuperação judicial, previsto no art. 58. Dessa forma, concedida ou não a recuperação em 180 dias, todas as ações e execuções contra o devedor que pediu a recuperação voltarão a correr normalmente, pois o prazo máximo de suspensão é este ora estabelecido no § 4º do art. 6º. No entanto, se a recuperação já foi concedida na forma do art. 58, o crédito que a ela estiver submetido será pago nos próprios autos da recuperação, não havendo assim interesse no prosseguimento de ações ou execuções.” (Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada, RT, 2007, pág. 65)

É que existem dois valores a serem ponderados, a manutenção ou tentativa de soerguimento da empresa em recuperação, com todas as conseqüências sociais e econômicas dai decorrentes (como, por exemplo, a manutenção de empregos e o giro comercial da recuperanda), e, de outro lado, o pagamento dos créditos trabalhistas reconhecidos perante a justiça laboral.

No caso, diante do conflito aparente, o valor que prepondera é o da preservação da empresa, até mesmo para, depois, se levantar recursos para o pagamento dos empregados. Permitir que “cada um defenda o seu crédito” implica em colocar abaixo o princípio nuclear da recuperação, que é o do soerguimento da empresa, a par de colocar em risco o princípio da “par conditio creditorum”.

Bem por isso, a orientação que tem prevalecido no Superior Tribunal de Justiça, de que constitui expressão o acórdão proferido no CC nº 73.380/SP, relator Ministro Hélio Quaglia Barbosa, do qual transcrevo o seguinte excerto, verbis:

“Ora, uma vez aprovado e homologado o plano, contudo, não se faz plausível a retomada das execuções individuais após o mero decurso do prazo legal de 180 dias; a conseqüência previsível e natural do restabelecimento das execuções, com penhoras sobre o faturamento e sobre os bens móveis e imóveis da empresa em recuperação implica em não cumprimento do plano, seguido de inevitável decretação da falência que, uma vez operada, resultará novamente, na atração de todos os créditos e na suspensão das execuções individuais, sem benefício algum para quem quer que seja.”

Naquela oportunidade, ressaltou o saudoso Ministro:

Nem se alegue que os trabalhadores poderiam ficar reféns, indefinidamente, do plano de recuperação, uma vez permitida a extrapolação do prazo de 180 dias, pois a nova lei, como se sabe, possui regras firmes a serem observadas pelo administrador judicial e pela autoridade judiciária condutores da recuperação, como o prazo não superior a uma ano para pagamento dos créditos trabalhistas ou decorrentes de acidente do trabalho (art. 54), além de prever drástica sanção, em seu art. 61, §1º:

§ 1º Durante o período estabelecido no caput deste artigo (dois anos depois da concessão da recuperação judicial), o descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano acarretará a convolação da recuperação em falência, nos termos do art. 73 desta Lei’.”

No mesmo sentido, decidiu esta Colenda Segunda Seção, à unanimidade, em acórdãos proferidos no julgamento dos Conflitos de Competência nº 88.661/SP e nº 92.005/SP, relator Ministro Fernando Gonçalves, assim ementados:

“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. VIAÇÃO AÉREA SÃO PAULO S.A – VASP. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUSPENSÃO DAS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS. NECESSIDADE.

1. O conflito de competência não pode ser estendido de modo a alcançar juízos perante os quais este não foi instaurado.
2. Aprovado o plano de recuperação judicial, os créditos serão satisfeitos de acordo com as condições ali estipuladas. Nesse contexto, mostra-se incabível o prosseguimento das execuções individuais. Precedente.
3. Conflito parcialmente conhecido para declarar a competência do Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo – SP.”

“RECUPERAÇÃO JUDICIAL. JUÍZO UNIVERSAL. DEMANDAS TRABALHISTAS. PROSSEGUIMENTO. IMPOSSIBILIDADE.

 

1 – Há de prevalecer, na recuperação judicial, a universalidade, sob pena de frustração do plano aprovado pela assembléia de credores, ainda que o crédito seja trabalhista.

2 – Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo – SP.”

Vale aqui registrar precedente recente da Primeira Seção, da relatoria do Eminente Ministro Castro Meira, julgado em 10/09/2008, cuja ementa está vazada nos seguintes termos:

“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES. PRAZO DE CENTO E OITENTA DIAS. USO DAS ÁREAS OBJETO DA REINTEGRAÇÃO PARA O ÊXITO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO.

1. O caput do art. 6º, da Lei 11.101/05 dispõe que “a decretação da falência ou deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário”. Por seu turno, o § 4º desse dispositivo estabelece que essa suspensão “em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação”.

2. Deve-se interpretar o art. 6º desse diploma legal de modo sistemático com seus demais preceitos, especialmente à luz do princípio da preservação da empresa, insculpido no artigo 47, que preconiza: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

3. No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º, da Lei nº 11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade da empresa.

4. Precedentes: CC 90.075/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 04.08.08; CC 88661/SP, Rel. Min, Fernando Gonçalves, DJ 03.06.08.

5. Conflito positivo de competência conhecido para declarar o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo competente para decidir acerca das medidas que venham a atingir o patrimônio ou negócios jurídicos da Viação Aérea São Paulo – VASP.” (Conflito de Competência nº 79.170/SP, publicado em 19/09/2008)

Até mesmo em relação à possível extensão dos efeitos e responsabilidades aos sócios, melhor que o juízo da recuperação judicial, a luz dos fatos que ensejaram a crise empresarial, avalie quanto a seu cabimento.

4. Do exposto, nos termos do parecer do Ministério Público Federal, conheço do conflito para declarar competente o Juízo de Direito da 3ª Vara de Matão/SP.

É o meu voto.

Fonte: Conjur