Gilberto Melo

Cumprimento de sentença: Uma análise do art. 524 § 5º do CPC

Quando o CPC disciplina o Cumprimento de Sentença para pagamento de quantia certa, impõe, no seu art. 524 uma série de requisitos para a abertura da fase executiva do processo sincrético. Por se tratar de condenação de quantia certa, o legislador impôs ao credor (exequente), a necessidade de fazer um requerimento, sinalizando assim o início da fase executiva (art. 513 § 1º), e com ele deverá acompanhar alguns elementos que demonstram, não apenas a liquidez e exigibilidade – até mesmo porque estes já estarão presentes na decisão judicial liquidada – mas a existência, por meio de demonstrativo analítico, de dados que são levados em consideração para a definição do quantum bem como a evolução do numerário no tempo (correção monetária, juros aplicados, especificação de descontos, etc.)

Não se deve confundir os requisitos deste requerimento (o que o código chama de “dados”), com a necessidade prévia (se for o caso) de liquidação do valor da condenação. Como se sabe, o cumprimento de sentença de quantia certa, exige uma decisão judicial liquida. Os dados referidos nos requisitos do requerimento (art. 524) e aqueles que sejam necessários para explicitar os cálculos não se confundem com a hipótese de liquidação.

Deste modo, os parágrafos do art. 524, especificam hipóteses em que são necessários dados aptos a elaboração do demonstrativo de débito. Portanto, será o próprio título judicial (decisão), a princípio, que definirá a necessidade do procedimento de liquidação. No entanto, a insuficiência de dados em poder do credor para a elaboração de demonstrativo de débito (requisito para a abertura do procedimento de cumprimento de sentença), é tratado de forma diversa, de modo a poder ser suprido no próprio procedimento executivo, logo na sua abertura. A principiologia é evitar a adoção de um procedimento prévio de liquidação.

Assim, especifica o legislador que, se o credor, no momento do requerimento de cumprimento de sentença, não tiver dados para elaboração do demonstrativo de débitos, poderá o juiz requisitar tais dados que estejam em poder do executado ou de terceiros.

A hipótese, contida no § 3º do art. 524, poderá ensejar duas situações distintas, sempre partindo da premissa que não detém o credor, quaisquer dados, sequer aptos a instruírem um demonstrativo de débito.

Se tais dados estão em poder da parte contrária (ora executado), deverá o juiz intimá-lo para apresentá-los, no prazo a ser fixado e não o sendo, no prazo de 5 dias. Para tanto, poderá o juiz utilizar-se de todas as medidas indutivas e/ou coercitivas, não se limitando apenas a previsão de crime de desobediência que está no dispositivo. É de se recordar, que é plenamente aplicável aqui, o disposto no art. 139, IV do Código, inclusive com a aplicação de multa diária (astreintes).

Para dados que estejam em poder de terceiros, é necessário que, inicialmente, se integre o sujeito (terceiro) na relação processual existente, não havendo, portanto, ao nosso ver, como dispensar a instauração de incidente de exibição de coisa, disciplinado no art. 401 do CPC. Não há como se falar em simples intimação, mas sim em verdadeira citação para que possa, com observância do efetivo contraditório, integrar o terceiro a relação jurídica-processual. Assim, deverá ser instaurado o incidente através de petição inicial formulado pelo credor, citando o terceiro para responder inicialmente no prazo de 15 dias (art. 401) e somente após uma decisão de mérito do respectivo incidente, é que deverá ser, se for o caso, compelido a exibir os dados (art. 403). Em que pesem, divergências doutrinárias a respeito, penso que a decisão que resolve o incidente (que não se confunde processualmente com aquela em que participa o devedor e credor) deverá ser considerada como sentença, recorrível por meio de apelação.1 Para efetivação da ordem de exibição dos dados, já prevê o art. 403, parágrafo único, todos os meios indutivos, coercitivos, mandamentais ou sub-rogatórios.

Hipótese que desafia maiores explicações, no entanto, é aquela que está especificada dentre os parágrafos 4º e 5º do art. 524, isto é, quando for necessária a complementação de dados para a elaboração do demonstrativo de débito pelo credor. Nesta hipótese o credor é possuidor de dados iniciais para preenchimento do requisito, porém, não suficientes para transmitir uma certeza em relação a quantidade ou modo de cômputo do crédito exequendo. Sendo assim, prevê o código a intimação para o executado complementar esses dados (que estejam em seu poder), podendo o juiz fixar livremente o prazo (em até 30 dias ou mais, dependendo da complexidade e em atenção ao art. 139, VI). A consequência da desobediência pelo executado, vem disposta no parágrafo seguinte (§ 5º), quando dispõe da presunção de serem considerados corretos os cálculos apresentados pelo exequente.

No entanto, penso que tal presunção deve ser vista com cuidado, não podendo enquadrá-la como presunção absoluta. Vejamos. Não há na legislação, um impedimento, mesmo que operado o efeito disposto neste parágrafo 5º do art. 524, para que o devedor, quando não cumprir a ordem, possa contestar o cumprimento de sentença, alegando e demonstrando, em sede de impugnação, o excesso (provocado pela presunção decorrente da lei)2.

O que significa dizer que essa presunção de considerar como correto os cálculos do exequente, vigora até a oportunidade do executado contrapor o referido excesso. Veja que, do contrário, se estaria elevando o efeito previsto no parágrafo 5º do art. 524 a uma consequência até mesmo pior do que o próprio efeito da revelia no processo de conhecimento (que, mesmo sendo ela constada pela ausência de defesa, não impede, que o revel possa, desde que em tempo útil, produzir provas contrapostas às alegações do autor e se sagrar até vencedor na demanda, demonstrando que o autor carece do direito material que afirmou ter).

Evidentemente que não está aqui querendo afirmar que o comportamento da parte, em desobedecer a um comando judicial possa ser objeto de premiação ou benefício. Porém, se por um lado não se pode premiar aquele que não possui uma conduta processual adequada, também não se torna automaticamente correta, a afirmação de que a parte contrária, com a conduta (ou omissão) do sujeito processual, possa literalmente ganhar um direito material que não faz jus. Pois é exatamente disso que se trata. Se o próprio credor sabe que o seu cálculo é manifestamente excessivo, pois para a sua certeza (qualidade) são necessários dados que estão em poder do executado, sabe-se, desde logo, que o seu direito material não é propriamente aquele. De outro lado, aquele sujeito que não obedece a uma conduta processual adequada (vez que não cumpre uma determinação judicial) poderá sofrer sanções, igualmente, de caráter processual (e que hoje, não são poucas, vide o art. 139, IV e 774, IV e parágrafo único) que se agregará ao direito do exequente (sem, contudo, modificar o seu direito material). Ainda que tais sanções sejam vertidas em dinheiro em benefício ao exequente, não se adita o seu direito material. O que se agrega (no aspecto valorativo, numerário) ao direito material decorrente do título judicial, são as consequências das sanções processuais, advindas de comportamentos ilegítimos e de resistência injustificada por parte do devedor no processo, que se repisa, merecem dura repressão.

Não se pode ainda interpretar que tal presunção de correção dos cálculos tenha por efeito, o impedimento do executado, em momento posterior alegar e comprovar o excesso de execução, hipótese em que a realidade afastará a presunção. Veja, pois, que a presunção estabelecida no parágrafo 5º, refere-se apenas para verdadeiramente “destrancar” o procedimento executivo, de modo a permitir que ele prossiga, podendo, no entanto, a presunção ser afastada no caso de comprovação posterior, pelo meio adequado (art. 525), quando da demonstração de excesso. E nem por isso, as sanções, de natureza processual, impostas ao executado que descumpriu a ordem judicial, tornam-se inexigíveis. Ao contrário, como já se expôs, agregam-se ao direito material (mas com ele não se confundem)

Um aspecto final deve ser levantado, relativo aos honorários de sucumbência, numa eventual impugnação (posterior a presunção do § 5º do art. 524). Isto porque, não se mostra legitimo que o executado, seja considerado vencedor (para fins de sucumbência) numa impugnação que verse sobre um excesso que ele, no início do procedimento, deu causa, por sua má conduta processual. Ora, se a sua conduta (ou omissão) processual fez com que a presunção, decorrente de lei, pudesse existir, não pode agora, na impugnação (ainda que comprove o excesso) ser merecedor de honorários. Aqui, deve-se aplicar, por óbvio, o princípio da causalidade para distribuição dos ônus da sucumbência, pois em verdade, o descumprimento de uma ordem judicial pelo executado, fez com que a execução prosseguisse pelo valor presumivelmente em excesso. Por óbvio o excesso será afastado da execução (mas frisa-se, não as eventuais sanções impostas por sua má conduta no processo), porém não há de se falar em honorários de sucumbência, devido pelo credor.

Desta forma, deve-se separar aquilo que é decorrente de comportamento processual (que gerará sanções de natureza processuais) e aquilo que decorre do direito material (aquilo que é devido de acordo com o título judicial ostentado).

Presunções não podem valer mais do que a realidade quando esta se impõe aos olhos do julgador. Por outro lado, não pode ser tolerado comportamentos maliciosos ou desidiosos. Para cada uma das situações uma solução que respeite a distinção entre direito material e direito processual.

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1 Não me parece que, no caso deste incidente, tenha aplicação o art. 1.015, VI, pois não se tratará de decisão interlocutória e sim decisão que põe fim ao processo, que mais se coaduna com o conceito legal do art. 203 § 1º do CPC.
2 Em sentido contrário, o STJ: “(..) Ônus do executado exibir os documentos indispensáveis para realização de cálculos voltados a apurar o quantum da condenação, sob pena de não poder contestar as contas a serem formuladas pelo exequente. Inteligência do art. 475-B, §2º, do CPC. (AgRg no Ag 1275771/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 13/3/2012, DJe 23/3/2012).
O interessante contudo, é que, apesar de constar na ementa (a meu ver, de forma equivocada) a impossibilidade de contestação das contas (presumivelmente) corretas elaboradas pelo credor, na integra do voto, se ressaltou a natureza processual e de sanção gerada pela presunção, vejamos: “Ademais, em fase de execução do julgado, o eventual descumprimento do  comando exibicional ensejará a aplicação do previsto no art. 475-B, § 1º e 2º do CPC, transferindo-se à credora a faculdade de elaborar os cálculos segundo suas próprias estimativas, recaindo sobre a casa bancária a sanção processual do artigo 475-B, § 2º do CPC“. Ou seja, a meu ver, se é reconhecido (como constou no acórdão) a natureza processual desta sanção, não há como dizer que isso impede a discussão do direito material que não é, por si alterado, em decorrência de uma sanção processual.

Autor: Scilio Faver, Advogado

Fonte: migalhas.uol.com.br