Gilberto Melo

Correção monetária no cível

Correção monetária no Cível
*Gilberto Melo

1. Introdução
A correção monetária dos débitos judiciais é assunto tormentoso no âmbito da Justiça Comum e mais especificamente na Justiça Estadual. Ao contrário da Justiça Especializada do Trabalho, a qual sempre é contemplada pela legislação nos sucessivos planos econômicos, com a determinação dos indexadores e dos critérios de atualização monetária e de aplicação de juros de mora, o mesmo não acontece na Justiça Comum.

2. A correção monetária dos débitos judiciais
A despeito de ter sido implantada em 1964, somente em 1981, através da Lei 6.899, a correção monetária foi definitivamente admitida na liquidação dos débitos decorrentes de decisão judicial. A partir daí percorremos uma verdadeira via crucis de planos econômicos, desindexações, expurgos inflacionários, não se dedicando o legislador em deixar claros os critérios para as liquidações de sentença, de forma a satisfazer da maneira mais justa possível as pretensões colocadas em juízo.

Há que se salientar que a determinação dos critérios de cálculo de liquidação de sentença é matéria jurisdicional, afeta ao poder judicante do juiz, que não precisa ficar adstrito às normas monetárias que manipulam os indexadores. A manifestação mais precisa da legislação, entretanto, diminuiria as intermináveis discussões em matéria de correção monetária, que entulham o Judiciário com pilhas de processos.

 
3. A legislação pertinente
A Lei 6.899, de 08.04.1981, foi regulamentada pelo Decreto 86.649, de 25.11.1981, que determinou que a correção monetária incidente sobre qualquer débito resultante de decisão judicial se faria através da variação das ORTN (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional).

O Decreto-Lei 2.284, de 10.03.1986 (Plano Cruzado), substituiu as ORTN pelas OTN (Obrigações do Tesouro Nacional), retirando o termo “Reajustáveis”, como se isto refreasse o ritmo frenético da inflação.

Seguiu-se o Plano Verão, que através da Lei 7.730, de 31.01.1989 extinguiu as OTN e não nomeou seu substituto. Ao contrário de que desejavam as autoridades monetárias, a inflação não foi debelada, acarretando a necessidade de instituir o BTN (Bônus do Tesouro Nacional) através da Medida Provisória 57, de 22.05.1989 (convertida na Lei 7.777, de 19.06.1989), retroagindo-o a fevereiro/89.

Até janeiro de 1991 tínhamos bem definida a seqüência ORTN/OTN/BTN, a qual, a despeito de não refletir exatamente a perda de poder aquisitivo da moeda no período, bem ou mal, traçou uma referência para a liquidação de sentença dos débitos judiciais no período. A matéria sobre os expurgos inflacionários dos planos econômicos merece uma abordagem específica, feita em outro artigo publicado em www.gilbertomelo.com.br.

4. O vácuo legislativo
A Lei 8.177, de 01.03.1991 (ex-MP 294, de 31.01.1991), sob a égide do chamado Plano Collor II, promoveu a extinção do BTN, interrompendo a série de indexação por Letras Financeiras do Tesouro Nacional. A intenção das autoridades monetárias era desindexar a economia, instituindo a TR (taxa referencial), taxa que refletia o custo primário de captação dos CDB’s (Certificados de Depósito Bancário), medido pela TBF (Taxa Básica Financeira) submetida a um redutor, em tese para retirar dela os juros remuneratórios da aplicação em CDB.

A TR, com as várias alterações de critérios de cálculo do “redutor”, revelou-se no decorrer do tempo uma taxa exdrúxula, que não é índice de preços ao consumidor, não é taxa de juros como é comumente denominada, não reflete a correção monetária contida nos CDB’s, tratando-se de mero instrumento de manipulação pelo Governo Federal. Prova inconteste de que a TR é manipulada é a distância de seus percentuais acumulados em relação aos índices de preço, assim como o fato de ser igual a zero em muitos meses.

Pretendia-se estancar a indexação pela inflação passada e criou-se a TR, que era prefixada, ao contrário dos índices de preços que só podem ser pós-fixados, face à  natureza de sua apuração pela comparação dos preços relativos.

O artigo 39 da Lei 8.177 contemplou a Justiça Especializada do Trabalho com a “correção monetária” pela TR mais 1% de juros simples ao mês, mas silenciou-se em relação aos débitos judiciais na Justiça Comum. Mais uma vez o Governo Federal não logrou êxito em seu intento de zerar a inflação, mas desta vez não determinou outro indexador oficial no lugar do BTN, deixando um vazio inquietante quanto aos critérios de atualização a partir de sua extinção fevereiro de 1991.

 
5. A adoção da TR como substituto do BTN
O mercado logo elegeu a TR como o indexador oficial, a qual passou a ser adotada para a atualização dos débitos na Justiça Estadual e na Justiça Federal (para algumas modalidades de liquidação), como uma saída para a manutenção do poder aquisitivo de valores pretéritos, face ao silêncio da Lei e face ao cunho dado à TR como o índice pré-fixado que daria fim à então chamada inércia inflacionária.

A TR foi guerreada ostensivamente e julgada inconstitucional como substituta do BTN nos contratos do Sistema Financeiro de Habitação pre-existentes à sua criação (ADIN 493-0). Apesar de se tratar de índice de custo de dinheiro (TBF) sumetido a um redutor, e não um índice de preços, havia à época argumentação jurisprudencial lógica para a aceitação da TR como fator de cálculo da desvalorização monetária dos débitos judiciais:

5.1
Tradicionalmente, desde a edição da Lei 6.899/81, a atualização dos débitos judiciais tinha sido feita com a aplicação dos mesmos índices adotados para a remuneração dos depósitos de caderneta de poupança. E estas vêm sendo corrigidas pela TR desde a sua instituição (AI 502217-3 §1 TACSP); 

5.2
 Bem ou mal, a TR substituiu o IPC-IBGE (indexador do BTN), como decorre de induvidosa interpretação da Lei 8.177/91

5.3
A partir de sua edição foi instituída como sistema único de atualização de obrigações com cláusula de correção monetária (dívidas de valor e outras expressamente previstas na legislação federal), em relação ao qual será sempre possível medir a aceleração numérico-quantitativa do movimento econômico…(in DOJ, SP, de 30.04.92, p. 43, precatório relativo ao processo 147/82, oriundo da 10a. Vara da Fazenda Pública).

A Justiça Federal adotou a UFIR a partir de 02.01.1992 nas modalidades de liquidação em que utilizava a TR.

A Justiça Estadual em muitos Estados manteve a TR até o advento do Plano Real. A tendência jurisprudencial dirigiu-se, no entanto, para o entendimento de que, extinto o IPC-IBGE em fevereiro de 1991 (o indexador do BTN), o INPC-IBGE seria o melhor indexador a partir de março de 1991, pelas mesmas razões citadas no item seguinte deste artigo, onde se colocou o INPC-IBGE para suceder o IPCr-IBGE.

 
6. O Plano Real
O art. 27 da Lei 9.069, de 29.06.1995 (ex-MP 542, de 30.06.1994) determinou que a correção da expressão monetária de obrigação pecuniária contraída a partir de 01.07.1994 somente poderia dar-se pela variação do IPC-r/IBGE (Índice de Preços ao Consumidor – restrito), criado por esta mesma lei.

O § 5º do mesmo artigo, por outro lado, estabeleceu que a TR somente poderia ser utilizada nas operações realizadas nos mercados financeiros, de valores mobiliários, de seguros, de previdência privada e de futuros, não explicitando a sua aplicabilidade a débitos judiciais. Passou-se, então, a utilizar o IPC-r a partir de 01.07.1994, até a sua extinção em 30.06.1995.

7. Período pós IPC-r
Na conversão para R$ (reais) os valores em CR$ (cruzeiros reais) foram divididos por 2.750 e procedeu-se à extinção do IPC-r pelo art. 8o. da MP 542, caindo-se novamente no vazio quanto aos parâmetros que o sucederiam. 

Considerando que o propósito da atualização monetária dos débitos judiciais é recompor o poder aquisitivo da parte lesada, não o empobrecendo e nem o enriquecendo ilicitamente, além de tomar como analogia o Decreto 1544 de 30.06.95 que recomendou a média aritmética do INPC/IBGE e do IGP-DI/FGV para a substituição do IPC-r, à época passou-se a adotar no TJSP, TJMG, entre outros Tribunais, o INPC/IBGE como a melhor alternativa técnica para substituir o IPC-r extinto, pelos seguintes motivos: 

7.1
É um índice oficial, instituído por Lei Federal. Segundo o art. 22, VI CF, compete privativamente à União legislar sobre o sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais. 

7.2
O INPC é calculado e divulgado pelo IBGE, fundação mantida pelo Poder Público e, portanto, integrante da Administração Pública Federal (art. 37, “caput” da CF); 

7.3
 Sua metodologia de apuração é idêntica à do IPC-r (Índice de Preços ao Consumidor – Real) e à do antigo IPC/IBGE (extinto em fevereiro/91), com exceção apenas quanto ao período de coleta, que é de ponta a ponta (do primeiro ao último dia do mês de referência) enquanto o IPC e o IPC-r mediam a inflação do dia 16 do mês anterior ao dia 15 do mês de referência. Pelo fato de estarmos em período de relativa estabilidade econômica, tal detalhe se torna insignificante.

7.4
A Lei 8.177, de 1991, além de extinguir alguns indexadores ressaltou no artigo 4o que o IBGE continuaria a apuração do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor.

 
8. Resumo dos indexadores
Com as considerações expostas, resumimos a seguir a sequência cronológica dos indexadores, não computada a inclusão dos expurgos que têm são matéria pacificada na Corte Especial do STJ e que alteram substancialmente o resultado final das liquidações de sentença, conforme outro artigo do site1.

INDEXADOR
PERÍODO
ORTN
outubro/64 a fevereiro/86
OTN
março/86 a janeiro/89
BTN
fevereiro/89 a fevereiro/91
INPC (substituindo a TR)
março/91 a junho/94
IPC-r
julho/94 a junho/95
INPC
julho/95 em diante
Neste mesmo período ocorreram as seguintes modificações na moeda brasileira:

MOEDA
PERÍODO
DIVISÃO POR
Cruzeiro
até 12.02.1967
                  1000
Cruzeiro novo
13.02.1967 a 14.05.1970
1000
Cruzeiro
15.05.1970 a 27.02.1986
Sem divisão
Cruzado
28.02.1986 a 15.01.1989
1000
Cruzado novo
16.01.1989 a 15.03.1990
1000
Cruzeiro
16.03.1990 a 31.07.1993
Sem divisão
Cruzeiro real
01.08.1993 a 30.06.1994
1000
Real
01.07.94 em diante
2750

 
9. Conclusão
Traçamos uma visão panorâmica e sintética deste tema desafiante, sempre presente nas lides forenses. Passando ao largo dos questionamentos sobre o custo social do plano econômico em vigor (Plano Real), há que se reconhecer que só com uma relativa estabilidade econômica como a vivida pelo país a partir de julho de 1994 é possível vislumbrar uma realidade na qual o texto acima não faria qualquer sentido. A leitura do artigo sobre os expurgos inflacionários[1] é indispensável para a completa compreensão do tema correção monetária dos débitos judiciais.

[1] O artigo Expurgos Inflacionários nos Débitos Judiciais pode ser acessado em nosso site.

 
* O Autor é parecerista jurídico-econômico-financeiro, especialista em liquidação de sentença e cálculos judiciais, extrajudiciais e de precatórios, propositor da tabela uniforme de fatores de atualização monetária para a Justiça Estadual aprovada no 11º ENCOGE, engenheiro, advogado e pós-graduado em contabilidade, com site em www.gilbertomelo.com.br.